Operação cerca-índio

Em Rondônia, os índios estão cercados. Não se trata de uma força de expressão. Abra um mapa e busque localizar o estado brasileiro a noroeste, na fronteira com a Bolívia: décadas de desmatamento deixaram as terras indígenas como as últimas manchas verdes no território.

Nelas nascem os rios que correm todo o estado. Ali estão as florestas que servem de morada para etnias reduzidas a poucas centenas de sobreviventes.

Agora, estas terras são cobiçadas por sua madeira, minérios, por seu ‘valor de mercado’. Neste cerco não apenas a natureza está acuada; as comunidades indígenas estão encurraladas.

A grilagem de terras e o roubo de madeira são os crimes que servem para desmembrar as terras indígenas. Nos territórios Karipuna e Uru-eu-wau-wau há ataques em várias frentes.

Como se assistíssemos a um documentário sobre hordas de bárbaros tomando Roma de assalto, testemunhamos, em uma viagem à Rondônia, invasões constantes e índios ameaçados.

Imagine o jogo: o tabuleiro se chama Rondônia e o objetivo é colocar peças dentro das últimas ilhas verdes, as florestas. As peças são os grileiros, os madeireiros. Eles avançam. Tem o apoio dos políticos locais, também na Câmara e no Senado. Os agentes do estado ou representantes da sociedade civil tentam barrar as invasões. Mas também estão ameaçados.

Os Karipuna e Uru-eu-wau-wau ainda assim lutam. Resistem há décadas, na verdade. Mas agora é diferente. Com o novo presidente, Jair Bolsonaro, a guerra contra os territórios indígenas foi declarada.

O cacique consternado

Em setembro do ano passado, André desapareceu. Ele saíra para uma caçada no mato com os parentes, quando decidiu por conta própria averiguar a presença de invasores na terra Karipuna. Não voltou mais.

Sabendo da entrada de madeireiros no território indígena, logo pensou-se o pior: o cacique havia topado com invasores. Chefe da Aldeia Panorama, a única restante do povo Karipuna, André já havia sofrido ameaças por denunciar a extração ilegal de madeira e a grilagem dentro da terra indígena.

Por dias, seus primos o procuram pelas matas que bordeiam o rio Jaci Paraná. Voltavam para casa de noite, sem novidades. A mãe do cacique, Katsiká, uma senhora sempre falante e sorridente, ficava desconsolada . Seu outro filho, Adriano, também uma liderança entre os Karipuna, havia apenas três meses denunciado na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, o risco iminente de um ataque aos indígenas.

No fim da tarde do terceiro dia, André foi encontrado. Estava cambaleante em uma barranca do rio depois de ter andado dentro da mata por 72 horas, sem qualquer comida. O que havia passado, fora mesmo um caso de desorientação. A paisagem de árvores tombadas confundiu o cacique que não achou mais o caminho por onde tinha vindo. Preocupado com um encontro cara-a-cara com madeireiros, fez inúmeros desvios tentando chegar em casa.

Quando André nos recebeu em fevereiro na Aldeia Panorama, ele nos contou sobre o episódio sem muito drama. Para um rapaz de 26 anos, o cacique carrega um semblante sério, de poucos sorrisos. A carga de ser o chefe da aldeia parece pesar. “Eu já não tenho a minha paz”, ele contou. As ameaças começaram exatamente quando ele se tornou cacique, há apenas um ano. “Pensei em desistir, ir embora daqui. Mas pensei na minha mãe, na minha família”.

Nos dias de nossa visita ao território Karipuna, saímos em uma longa caminhada com André para verificar se havia novos desmatamentos dentro da reserva. A jornada de oito quilômetros em meio a mata fechada foi aos poucos desembocando em pequenas clareiras com marcações nas árvores; antigos acampamentos de invasores.

Na beira de um rio encontramos mudas de café plantadas há pouco tempo. A última vez que André andou por ali havia sido em setembro. Cruzamos o igarapé e passamos a andar numa trilha aberta pelos próprios invasores. Apenas poucos quilômetros percorridos, ouvimos um barulho intermitente de máquina. Parecia uma motosserra. A tensão se instalou e mesmo sem saber a que distância estávamos dos possíveis madeireiros, passamos a nos comunicar por sinais, para não fazer barulho.

Quando chegamos ao fim da trilha, nos deparamos com uma grande área desmatada. Não havia sinal visível de atividade. Mas o barulho seguia. Agora, mais próximos, podíamos notar tratar-se de um caminhão ou trator.  Era um skid, uma máquina utilizada para desmatar e abrir estradas, garantiu o cacique.

Isso apenas confirmava o que ele já sabia: que os madeireiros estavam abrindo mais uma estrada para entrar na Terra Indígena e já estavam bem no centro do território de 152 mil hectares. No dia seguinte, de volta à Aldeia Panorama, André contou a sua mãe, Katsiká, o que havia visto. Consternada, ela murmurou: “Nunca a nossa terra foi tão pequena.”

O menino cacique e o tio guerreiro

Bahira será cacique. Ninguém sabe quando, mas como um pequeno príncipe, seu futuro é certo: ele já foi escolhido para chefiar a aldeia. Hoje, seu pai, Taroba, é o cacique.

Bahira é o caçula de quatro filhos. Na Aldeia Alto Jamari, além dos pais, vivem sua avó, suas três irmãs, tios, tias, primos, primas e um sobrinho, Thalison, um bebê de um ano que vive pendurando-se carinhosamente nas pernas dos adultos.

Bahira tem 11 anos e na aldeia é ele quem pesca. No igarapé de água leitosa que margeia as seis casas de madeira existem piabas. Não só isso: ele pastoreia os seis bois que possuem os índios. Logo cedo, todos os dias, ele ordenha as vacas para trazer leite para seus parentes.

O futuro cacique vai à escola, construída bem na aldeia, ao lado de um posto de saúde. Ele é o único menino de sua idade. Embora em outras aldeias dos Uru-Eu-Wau-Wau existam outros garotos de sua idade, eles estão a quilômetros de distância.

Seis aldeias Uru-Eu-Wau-Wau estão espalhadas em um território de 1,8 milhão de hectares. Há também três aldeias de indígenas da etnia Amondawa, além de três grupos de índios isolados.

O amigo mais próximo de Bahira parece ser o tio Awapu. Aos 28 anos, como um grande menino, ele faz piadas e provocações com o futuro cacique. Brincalhão, o tio muda de tom quando fala de ameaças. Awapu foi ‘alertado’ quando confiscou uma moto de um invasor dentro da terra indígena. Um dia, de um proprietário vizinho ao território, ouviu: “É bom você parar com estas coisas, pois isso vai te dar problema”.

Segundo o tio de Bahira, o conselho que sempre escutam é “não se metam com os invasores, apenas busquem a polícia”. E de fato, eles o fizeram. Não são poucos os delegados da Polícia Federal que compartilham seus números de WhatsApp com os líderes indígenas.

Mas de uma denuncia a uma ação efetiva de combate a invasores, parece haver um longo caminho. Os indígenas esperam ações de repressão, mas elas demoram a chegar. Por isso, Awapu e outras lideranças jovens estão quase sempre organizando rondas e missões a áreas historicamente cobiçadas por invasores.  

Em fevereiro de 2017, junto com seu irmão, o cacique Taroba, e outros indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, ele surpreendeu dois homens em uma cabana construída em uma área recém desmatada, a apenas alguns quilômetros da aldeia Alto Jamari.

Eles amarraram os invasores e exigiram informações sobre quem os tinha enviado. Em vídeo gravado no dia, os dois homens afirmam que estavam ali de boa fé, pois lhes tinham dito que os “lotes” eram documentados, poderiam ser ocupados.  

Em fevereiro, quando visitamos a Alto Jamari, Awapu nos levou em nova ronda ao local onde há 2 anos há 2 anos encontraram o acampamento de posseiros, na parte norte da terra protegida. Na trilha, o indígena rapidamente notou vestígios de uma entrada recente. Além dos galhos frescos cortados a facão, havia garrafas de água, latas de cerveja e galões vazios de óleo de motosserra.

O caminho seguia uma picada nova que já se aproximava do rio Floresta, o mesmo que cruza a aldeia. Na beira do rio, eles viram também que, quem quer que fosse que havia entrado ali, jogara sal no barreiro das antas. Uma forma de atrair o mamífero e outra caça qualquer.

De volta à aldeia, Awapu contou à família o que tinha visto em nossa caminhada. “Eles estão indo cada vez mais longe”, pontuou depois de mostrar, em seu celular, as fotos da picada aberta.

Bahira, o futuro cacique, acompanhou a conversa ao nosso lado. Calado.

O cerco

KATSIKÁ, MÃE DO LÍDER ANDRÉ KARIPUNA, TEMEU O PIOR QUANDO O FILHO DESAPARECEU EM SETEMBRO DE 2018. Foto: Fabio Nascimiento.

 As invasões nos territórios indígenas em Rondônia não são algo novo. Povos que permaneceram em isolamento até os anos 1970, os Karipuna e os Uru-eu-Wau-Wau vivem desde então em constante disputa para manter sua terra protegida.

Ambas as reservas seguem questionadas, embora já reconhecidas e homologadas por decretos presidenciais. Em nível local, proprietários rurais disputam os limites da terra dos índios argumentando, com base em documentos antigos (ou falsos), que há erros de demarcação. Em uma esfera mais alta, prefeitos, deputados e até senadores defendem propostas de redução dos territórios. Em comum, estes dois grupos apoiam-se no discurso de que existe “muita terra para pouco índio”.

Dados de organizações da igreja católica que desde os anos 1980 monitoram os episódios de violência no campo, como assassinatos de lideranças e ameaças a comunidades, revelam o recrudescimento desta briga.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), desde 2016, foram registrados oito episódios de invasão para roubo de madeira e abertura de novas áreas dentro do território indígena Karipuna. No caso dos Uru-Eu-Wau-Wau, existem quatro ocorrências de ataques registradas desde 2012.

Outra fonte de informação, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) incluiu em sua base de dados o registro de uma ameaça feita a Adriano Karipuna, o irmão de André e antigo cacique. Ele recebeu em 2017 ligações anônimas com ameaças de morte. Em abril do ano seguinte, durante a 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas na sede da ONU em Nova York ele denunciou: “Nosso povo foi reduzido a cinco pessoas. Hoje somos 58, com a terra homologada desde 1998. Mas madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e grileiros agem de forma incansável. O governo brasileiro não protege o território.”

As evidências desta hostilidade contra os índios também se traduzem em desmatamento. Uma análise utilizando os dados do Programa de Monitoramento por Satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Prodes- INPE) indica derrubadas crescentes dentro e no entorno dos territórios. Os último levantamento disponível (de agosto de 2017 a julho de 2018) revela ser este o período com mais alto desmatamento dentro das terras Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau nos últimos dez anos – 460 hectares e 690 hectares respectivamente.

Um hectare equivale aproximadamente a um campo de futebol.

Ampliando-se a análise a um perímetro de 10 km ao redor dos territórios a pressão se torna mais visível. Desde 2008, foram cerca de 8.400 hectares desmatados no entorno da terra indígena Karipuna e 3.060 hectares ao redor da Uru-Eu-Wau-Wau. Nos últimos três anos, ocorreram as maiores extensões de desmatamento na faixa de 10 quilômetros ao redor das duas terras indígenas: em 2016, foram 1460 hectares; em 2017, 1.660 hectares; e, em 2018, 1.430 hectares.

A ABERTURA DE ESTRADAS PARA EXTRAÇÃO DE MADEIRA ENTRE OS ANOS DE 2016 E 2018 NO TERRITÓRIO DE KARIPUNA DE UMA PERSPECTIVA DE SATÉLITE. IMAGENS SENTINEL 2 / ESA.

Um dos exemplos recentes da constante disputa pelas terras indígenas é a presença de  propriedades sobrepostas aos limites ou mesmo dentro das reservas. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é o instrumento de regularização fundiária criado pelo governo brasileiro após a aprovação do novo Código Florestal em 2012. A extensão da propriedade, bem como suas áreas de preservação permanente, são autodeclaradas.

Dados levantados pela reportagem mostram que existem 325 propriedades rurais declaradas dentro do território Uru-Eu-Wau-Wau. Além disso, 812 imóveis rurais têm intersecção com ambos os territórios indígenas.

Para combater o avanço do desmatamento, o Ibama (a agência ambiental brasileira) aplica multas e abre processos de embargo às propriedades onde se infringiu a lei ambiental. De 10.996 autuações ambientais registradas no estado de Rondônia (atualizadas até 15 de novembro de 2018), 1.073 estão a um raio de 10km de uma das reservas e 475 estão num raio de 3km.

No caso do Uru-Eu-Wau-Wau. chama atenção o fato de que das 21 áreas embargadas dentro do território, mais da metade das sanções (14) foi aplicada após 2015. Uma atuação deste período – Auto de Infração 6.944, de 16 de maio de 2017 – serve como exemplo do tipo de crime ambiental que é praticado pelos invasores nas terras indígenas.

A multa de R$ 414 mil reais (~100 mil dólares) detalha que se deve ao ato de “danificar 68,7342 hectares de florestas nativa objeto de especial preservação, não passíveis de autorização para exploração ou supressão, na área de reserva indígena Uru Eu Wau Wau, com a exploração madeireira.”

Estes fatos apontam o padrão que se repete na história de Rondônia: o roubo de madeira e o desmatamento ilegal funcionando como táticas de grilagem de terras. Uma vez desmatadas, as terras se tornam mais valorizadas e por isso loteadas e vendidas. A partir daí se instalam litigâncias para a solução do caos fundiário e, não raro, os invasores recebem o apoio dos políticos locais e de seus representantes em Brasília (DF).

Em uma entrevista em Porto Velho (capital do estado), a procuradora Gisele Bleggi, do Ministério Público Federal em Rondônia, afirmou que existem evidências de que quadrilhas realizam a grilagem sistemática de terras indígenas no estado. Sem revelar nomes, ela diz que pessoas foram identificadas agindo para tomar terras em várias áreas pertencentes aos índios . Há ainda casos de grupos de invasores que partilham o mesmo advogado. “O que podemos dizer é que não se tratam de pessoas humildes em busca de terra”, revelou.

O episódio mais recente de invasão na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau ocorreu no dia 12 de janeiro de 2019. Em um vídeo gravado por moradores da aldeia Linha 623, um grupo de homens aparece em uma picada aberta dentro dos limites a leste da terra indígena. Bem na entrada deste trecho de mata, existe uma placa de metal do órgão responsável pelo cuidado aos indígenas no Brasil, a Fundação Nacional do Índio (Funai). A placa, que informa ser ali o início da terra protegida, está crivada de balas.

Juruna, um dos líderes da etnia, acompanhado de apenas mais três pessoas da aldeia, confrontou os invasores. “Aqui não pode não. Aqui nós não vamos deixar”, ele diz com arco e flecha nas mãos. Seu interlocutor no vídeo afirma que as pessoas que estão ali “querem terra” e pergunta qual seria a solução. Ao ouvir Juruna repetir que na terra indígena não podiam entrar, o homem magro e barba branca ameaça: “Hoje somos nós aqui, amanhã serão mais de 200, vocês podem esperar”.

Foto: Fabio Nascimiento.

O líder Uru-Eu-Wau-Wau reconheceu aquele que liderava o grupo: um vizinho de pelo menos três décadas, morador da mesma Linha 623 (estrada que corta assentamentos). Fontes mencionaram que, embora as invasões fossem frequentes no passado, a grande diferença está no fato de que os vizinhos das terras indígenas passaram a apoiar a organização de invasões.  

Naquele mesmo janeiro, um episódio similar ocorreu na terra indígena Karipuna. No dia 20 do mês, dois moradores da aldeia Panorama viajavam para um tratamento agentes de saúde do governo federal quando encontraram 20 pessoas dentro do território protegido, em uma área conhecida como Piquiá, que fica a apenas 8 km da aldeia. Os invasores haviam ocupado um posto de vigilância da FUNAI e se recusaram a sair do território. Desde então, os indígenas deixaram de usar a estrada que dá acesso à terra Karipuna.

Tanto os indígenas como seus defensores nas ONGs e nos órgãos públicos de proteção dos índios identificam a crescente ameaça aos territórios com o discurso inflamado do novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral, uma de suas promessas foi a interrupção dos processos para a demarcação de novas terras indígenas, além da revisão das já existentes. Vitorioso, o governante vem anunciando medidas que enfraquecem ainda mais a Funai, transferindo os poderes de demarcação de terras indígenas, antes pertencentes ao Ministério da Justiça, para o Ministério da Agricultura.

A promissora Rondônia

O marechal Cândido Rondon (1865-1958) talvez não imaginasse que um século depois de suas expedição às matas dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira, a terra que hoje leva seu nome se transformaria em um experimento econômico com manchas de genocídio.

Ele mesmo um descendente de indígenas, tornou-se o criador do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, que anos mais tarde daria origem à atual instituição do governo brasileiro para as questões indígenas, a FUNAI. Após as expedições no fim do século 19 para a instalação de linhas de telégrafo e reconhecimento de territórios brasileiros fronteiriços à Bolívia, o militar dedicou-se ao extremo oeste brasileiro com o intento de contatar tribos isoladas.

Hoje Rondônia é o único estado brasileiro que homenageia um personagem da História. O território de ‘índios bravos’, no entanto, se tornou rapidamente a ‘porta de entrada da Amazônia’ quando o governo de Juscelino Kubitschek iniciou a construção da rodovia BR-364 ainda nos 60. As linhas de telégrafo de Rondon deitaram o caminho que seria seguido para abertura da estrada. Este foi o principal eixo de ocupação do oeste da Amazônia brasileira durante os anos 1970, quando a política de colônia agrícolas foi impulsionada pelo recém instalado governo militar e por seu novo órgão encarregado de distribuir terras, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

A chegada dos colonos significou o contato com diversas etnias, entre elas muitas de grupos de “Tupi-centrais”, ou Kawahib, como os Piripkura, os Karipuna e os Uru-Eu-wau-wau. Hoje, estas etnias têm um fato em comum: estão reduzidas a algumas centenas de pessoas. Entre os Uru-Eu, que também são conhecidos como Jupaú, ou “bocas negras”, estima-se uma população de 85 indígenas. Já os Karipuna, que também em algum momento foram conhecidos como bocas negra, por usarem as mesmas tatuagens de jenipapo ao redor dos lábios, tiveram uma redução mais drástica. Hoje, apenas 58 habitam uma única aldeia no rio Jaci Paraná.

RIO JACI PARANÁ: UM DOS PRINCIPAIS A CORTAR RONDÔNIA E HABITADO HÁ SÉCULOS PELOS KARIPUNA. Foto: Pablo Nascimiento.

Os grupos Kawahib (ou Cauaíbe) ocuparam a bacia do rio Madeira e seus afluentes no século XIX e passaram, ainda que de forma involuntária, a proteger terras de grande importância ambiental. Eles estão em uma zona de transição entre o Amazônia e o Cerrado, onde a vegetação densa mistura-se a gramíneas e árvores mais baixas. Porém, a característica ambiental mais importante é o relevo montanhoso que abriga as nascentes de todos os rios mais vitais ao estado de Rondônia. Alguns, os maiores afluentes de três importantes sub-bacias amazônicas, do Madeira, Guaporé e Mamoré.

Os antropólogos e sertanistas que participavam do contato nos anos 70, sabiam da existência de um ciclo de ataques e contra ataques entre os índios e os seringueiros. Por isso, quando se anunciou a chegada dos colonos, solicitaram, através da FUNAI, a interdição das áreas a oeste de Rondônia, por onde perambulavam os Uru-Eu-Wau-Wau e os Karipuna.

Naquele momento, o ciclo de ocupação da Amazônia promovido pelos militares e a criação das colônias agrícolas caminhava a todo vapor. Hoje dos 52 municípios de Rondônia, 48 surgiram a partir de assentamentos agrícolas.  

A homologação dos territórios indígenas apenas ocorreu nos anos 90, através de decretos dos presidente Fernando Collor de Mello, no caso dos Uru-Eu-Wau-Wau em 1991, e de Fernando Henrique Cardoso, em 1998 no caso do Karipuna. No intervalo de 20 anos – entre o pedido de interdição e a efetiva demarcação dos territórios, a disputa entre colonos e indígenas pela terra já havia se aprofundado. Ela segue até hoje.

“Passados 47 anos (da criação de colônias agrícolas), estamos vivendo problemas que poderiam ter sido resolvidos, e a coisa foi se acomodando e acomodando por se tratar de terra indígena”, disse o antigo superintendente do INCRA em Rondônia, Cletho Muniz Britto, ao criticar a FUNAI em uma audiência pública no dia 27 de março de 2018 realizada pela Comissão de Agricultura do Senado Federal. A sessão foi convocada pelo ex-governador do estado, o senador Ivo Cassol, para debater a situação fundiária conflituosa entre os assentados e os indígenas Uru-Eu-Wau-Wau.

O entendimento do INCRA é que o próprio governo errou ao demarcar a terra indígena em área que já havia sido decretada como assentamento da reforma agrária. Em 1975, um decreto (75.281) desapropriou milhares de hectares pertencentes a oito seringais existentes na área, somando um total de 533,9 mil hectares. Parte deste território foi destinado ao Projeto de Assentamento Dirigido (PAD) Burareiro, onde foram assentadas 1500 famílias.

A FUNAI, no entanto, apoiando os pedidos de seus antropólogos e sertanistas, que testemunhavam a morte dos indígenas por doenças e conflitos, decidiu pela criação da terra através de uma portaria (508) em 1978, três anos depois que os assentamentos do INCRA tinham sido criados. Mas documentos do órgão provam que a interdição da mesma área destinada a assentamentos já havia sido interditada em 1974. Portanto, antes do INCRA criar Burareiro.

Assim, 105 famílias foram afetadas pela sobreposição com a terra indígena. O litígio em torno desta área abriu uma frente de invasão. O INCRA em desacordo com a FUNAI, seguiu emitindo títulos para lotes dentro da Terra Indígena. Basta comparar os dados dos antigos lotes criados, com os pedidos de Cadastro Ambiental Rural e o atual desmatamento ao norte da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau para notar a similitude dos polígonos.

Na sessão liderada pelo senador Ivo Cassol em março de 2018, o advogado Ermogenes Jacinto de Souza, representante de assentados do município do Jorge Teixeira, apresentou um requerimento para o desmembramento de uma área de 52 mil hectares da área indígena. “Se você for fazer uma comparação, de seiscentos e poucos índios, ou que haja mil índios, para 2 milhões de hectares, dariam 2 mil hectares para cada índio”, disse enquanto apresentava o argumento pela redução.

OFÍCIO ENVIADO PELO DEPUTADO FEDERAL LÚCIO MOSQUINI DO PMDB DE RONDÔNIA AO PRESIDENTE DA FUNAI EM FEVEREIRO DE 2018 PEDINDO INFORMAÇÕES SOBRE POSSÍVEL REDUÇÃO DA TERRA INDÍGENA URU-EU-WAU-WAU

Este mesmo pedido parece ter sido endossado um mês antes pelo deputado federal Lúcio Mosquini do MDB de Rondônia através do Ofício 110 de seu gabinete, enviado no dia 15 de fevereiro de 2018 ao presidente da FUNAI. No documento, o parlamentar requer uma posição do órgão indigenista sobre a possibilidade de redução de 52,600 mil hectares da terra Uru-Eu-Wau-Wau. Um mês depois, na audiência pública ele defendeu seu ponto de vista: “A Funai deveria flexibilizar a área antropizada (na terra indígena).”

Quando estávamos em Rondônia, na cidade de Jaru, reduto eleitoral de Mosquini, pedimos aos seus assessores uma entrevista com o deputado. Ele não pode nos atender. Mas o assessor parlamentar Sigmar Rodrigues Nunes afirmou em uma conversa por telefone que não existe por parte do parlamentar até o momento uma proposição legislativa para a redução da reserva indígena.

No Congresso os senadores cobraram o presidente da FUNAI, o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, sobre a demora do órgão em solucionar conflitos com colonos. Na época ainda sob o governo do presidente Michel Temer, ele afirmou que o órgão seria incapaz de rever os limites criados por um decreto presidencial. Pela constituição, terras indígenas homologadas pelo presidente só podem ser revistas com projeto de lei aprovado no Congresso Nacional.

Recentemente, Freitas foi reconduzido, por Jair Bolsonaro à presidência da FUNAI.

Na linha de frente

Depois de 35 anos vivendo em Rondônia, o frei Volmir Bavaresco ainda mantém o sotaque de gaúcho. Pouco afeito à conversa fiada, o dominicano de longa barba e compridos cabelos grisalhos é o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em Rondônia. Depois de anos trabalhando em outras frentes do estado, ele abraçou a defesa dos Karipuna. Desde 2016, coordena ações com os indígenas desta etnia.

“Nossa percepção é de que se cair a Karipuna, cai toda a proteção a terras indígenas em Rondônia, quem sabe no Brasil”, ele alerta. O CIMI, organização da igreja católica fundada em 1972, está desde seu início na linha de frente dos conflitos com índios gerados pela colonização da Amazônia.

Além da organização católica, o Greenpeace está ajudando os indígenas. Através de um projeto chamado “Todos os Olhos na Amazônia” tem monitorado novos desmatamentos na terra indígena através de sobrevoos e imagens de satélite.

A iniciativa de pedir ajuda ao CIMI e ao Greenpeace partiu do próprio povo indígena. Segundo o cacique André, a solicitação surgiu no momento em que eles, os Karipuna, se sentiram mais isolados, sem mesmo o apoio da FUNAI. Na percepção do líder Karipuna nos anos recentes, o órgão federal abandonou os índios. Nos últimos cinco anos, o orçamento do fundação caiu de cerca de 757 milhões de reais (200 milhões de dólares) para 597 milhões de reais (157 milhões de dólares).

 O CACIQUE ANDRÉ KARIPUNA, DE APENAS 26 ANOS. HERDOU O CARGO E AS AMEAÇAS DE SEU IRMÃO ADRIANO POR DENUNCIAR O ROUBO DE MADEIRA E A GRILHAGEM DE TERRAS. Foto: Pablo Nascimiento.

Embora também originado pelo conflito com antigos assentamentos, a ameaça aos Karipuna é distinta dos Uru-Eu-Wau-Wau. As invasões ao longo dos anos têm ocorrido para a retirada de madeira e, por essa razão, a abertura de estradas ilegais dentro do território.

A frente de destruição se concentra a oeste da terra indígena, no distrito de União Bandeirantes. Originalmente uma zona dedicada ao manejo madeireiro sustentável, União Bandeirantes teve 10 serrarias licenciadas no início de sua ocupação, no começo dos anos 2000. Mas o que prevaleceu foi a exploração ilegal. Madeiras retiradas da terra Karipuna passaram a abastecer as serraria vizinhas.

A forma e o teor dos planos de manejo autorizados pelo governo do estado de Rondônia não são acessíveis ao público. Contatada, a Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) do estado afirmou que os dados referentes às autorizações não poderiam ser enviados.

O Ministério Público Federal, no entanto, pediu em Ação Civil Pública de julho de 2018 uma auditoria nos planos de manejo em funcionamento no entorno da Terra Indígena Karipuna. Até o fechamento desta reportagem, nem mesmos os procuradores tinham recebido os dados sobre os planos de manejo de União Bandeirantes.

Uma outra preocupação é o surgimento de pleitos sobre a terra Karipuna. É possível encontrar na internet, uma série de vídeos em que o representante da empresa de engenharia Amazon Gel, Ediney Holanda Santos, em encontros com produtores rurais de União Bandeirantes, detalha procedimentos para a obtenção de documentos para a posse de terra dentro da terra indígena.

Segundo ele, se trata de “algo grande” que tem gente grande por trás. “O pessoal que critica não sabe as autoridades que estão do nosso lado”, diz.  E ainda alerta a audiência que os grupos de WhatsApp de Bandeirante devem ser mais discretos. “Eu vejo o cara postando foto de tora de madeira, o cara nem sabe que está sendo monitorado pela Polícia Federal”. Veja o vídeo.

Apesar de participar em reuniões como principal representante da empresa, Ediney não figura como sócio. Uma busca pelo registro da Amazon Gel na Secretaria da Fazenda de Rondônia revela que a empresa com CNPJ 26.244.487/0001-41 funciona com apenas um sócio, em nome da microempreendedora individual Cristiane Gomes da Silva.

Habilitada para fazer serviços de engenharia civil, não há no registro autorização da Amazon Gel para serviços de topografia, agrimensura e georreferenciamento por satélites. Estas são geralmente as capacidades requeridas para a regularização de terras.

NELSON BISPO DOS SANTOS: PRESO EM 2017 ACUSADO DE VENDAS DE LOTES DENTRO DA TERRA URU-EU-WAU-WAU. Foto: Pablo Nascimiento.

 A venda ou a facilitação de terras dentro de territórios indígenas é uma atividade comum em Rondônia. Em Ariquemes, terceira maior cidade do estado, encontramos Nelson Bispo dos Santos. Baiano de nascença, mineiro de criação, ele está há três décadas na terra de Rondon. Em 2017, ele e outras 19 pessoas foram presas em na Operação Jurerei da Polícia Federal que investigou a venda de lotes dentro da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau.

Segundo as investigações, Santos, através da organização que coordenava, a Associação dos Produtores Rurais da Comunidade Curupira, estava incentivando a invasão da terra protegida. Uma das provas foi encontrada no celular de posseiros apreendidos pelos índios dentro da reserva em 2017. Em um vídeo filmado em janeiro daquele mesmo, Santos aparece em um discurso exortando a que proprietários rurais a “tomarem e cuidarem dos seus lotes”.

À espera de uma sentença, ele vive  em um bairro residencial de Ariquemes, onde cumpre prisão domiciliar. Ele utiliza uma tornozeleira eletrônica. Numa tarde do dia 22 de fevereiro, ele nos recebeu para uma entrevista e nos mostrou os documentos que embasam, em sua visão, o direito à terra dentro do território dos índios. Um deles é exatamente a emissão de um Cadastro Ambiental Rural, com pouco mais de quatro mil hectares, autodeclarado dentro do território Uru-EU-Wau-Wau

De acordo com informações da Polícia Federal, fazer loteamentos era o modus operandi de uma quadrilha que estava encurralando os indígenas. As vendas de lotes são uma fachada para o desmatamento. Nas fiscalizações já foram encontrados lotes por 1500 a 2000 reais (550 dólares) o alqueire (cerca de 24 mil metros quadrados), que é um preço ínfimo comparado ao valor da terra na região. Ali o preço do alqueire é pelo menos 20 vezes mais – 20 mil reais a 40 mil reais.

Se existe alguém em que papo de títulos de terra não cola é João Alberto Ribeiro, 61 anos, atual chefe do Parque Nacional Pacaás Novos, uma área de 765 mil hectares que está sobreposta ao território indígena. Em suas ações de fiscalização – que ocorrem a cada 15 dias – o gestor já encontrou por três vezes um mapa com desenhos de lote que ocupam 60 mil hectares dentro da terra indígena. “Isso é coisa de profissional”, pontua.

O exemplo citado por ele como o precedente perigoso em Rondônia, é Floresta Nacional do Bom Futuro. A área que antigamente possuía 280 mil hectares sofreu um ataque em massa de madeireiros passou a ter 97,3 mil hectares. Houve falha do Ibama ao não manter uma fiscalização à altura.Instalaram-se vilas e até serrarias dentro da reserva. Em 2008, na época do governo Cassol, um escambo legislativo entre o governo estadual e federal permitiu a redução da unidade de conservação validando a tese de quem ocupa ilegalmente em algum momento pode obter a posse da terra..

“E assim está vindo em dominó”, diz Ribeiro em referência a constantes invasões ocorridas em unidades de conservação e terras indígenas no estado. Como o frei Volmir Bavaresco e a procuradora Gisele Bleggi, ele acredita em uma ação concertada para a grillagem de terras em áreas protegidas em Rondônia.

Um traço comum encontrado em todos os aliados dos índios ou funcionários públicos encarregados de defendê-los com quem conversamos é que eles também se sentem ameaçados. João Alberto tem casos cinematográficos de como saiu das emboscadas armadas por madeireiros. A situação chegou a tal ponto, que os fiscais do ICMBIo não podem mais utilizar o posto de fiscalização nas proximidades do parque. “São várias ameaças, genéricas e específicas. A gente fica sabendo por terceiros”.

Ivaneide Bandeira, fundadora da ONG Kanindé, que há duas décadas defende questões indígenas e ambientais no estado de Rondônia, não tem dúvida que a situação se deteriora com a ascensão de Bolsonaro ao poder. Segundo ela os invasores se sentem “empoderados”.

Ela define sua situação como extremamente frágil. Conta que no mesmo dia em que fizemos a entrevista, ela havia encontrado um grupo de indígenas que a alertaram para que não usasse uma camiseta de futebol com o logo da Kanindé. “A gente é alvo hoje”, ela lamenta.

Com as mãos espalmadas sobre um mapa que mostra os limites do território Uru-Eu-Wau-Wau, Neidinha (como é conhecida) explica que o avanço pelos dois lados da terra protegida é “problemática”, pois bem no centro da terra indígena existem três povos isolados. “É uma terra rica e tem um monte de gente querendo acabar com ela”.

Mas se desde que foi iniciada a colonização de Rondônia, os conflito em torno das terras indígenas parece incessante, qual seria a diferença com o novo governo de Bolsonaro?

“O grande diferencial agora é que a invasão está indo para cima da aldeia”, pondera a ativista.

Poucos dias antes do fechamento desta reportagem, recebemos informações da ONG de Neidinha, a Kanindé, sobre novas invasões, ocorridas ao longo de março e princípios de abril. Ou seja, logo após a nossa visita. Desta vez, as entradas ocorreram na Linha C5 próximos a aldeia Alto Jamari, ao norte da terra indígena. Está é a aldeia de Bahira e seu tio Awapu.  

Em um vídeo publicado no dia 02 de abril, os próprios posseiros falam em 400 famílias instaladas na terra indígena. Dois dias depois, agentes da polícia militar ambiental e do fizeram uma ação de emergência com sobrevoo e buscas na área. Encontraram o barracão de uma associação ainda desconhecida em invasões anteriores. Até o momento, os invasores não foram retirados e não houve ação do governo federal.

  • Esta reportagem recebeu apoio do Rainforest Journalism Fund através do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
  • Agradecimentos por apoio na logística: Kanindé e Greenpeace-Brasil
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