Perigo na fronteira: os indígenas ticuna defendem a floresta das garras dos narcotraficantes

Os indígenas ticuna resolveram proteger suas florestas em uma área do Peru onde culturas ilícitas declararam guerra à conservação. Equipados com telefones celulares, GPS e mapas, eles enfrentam madeireiros e traficantes de drogas, que respondem ameaçando matá-los. Estes homens e mulheres, os esquecidos da fronteira, imploram ao Estado que os escute por uma vez.

Toda vez que a erradicação de cultivos ilícitos é realizada em uma comunidade indígena do lado peruano do trapézio amazônico, seus habitantes se sentem perdidos. Eles sabem que o que está por vir é o inferno e que levantar-se levará uma eternidade.

“É como se eles estivessem demolindo uma casa e ela caísse sobre você”, diz Artemio da comunidade indígena de Nueva Galilea, no extremo leste do departamento peruano de Loreto. Por causa do risco que enfrentam, pede que seu sobrenome não seja mencionado.

A última vez que o Estado erradicou as plantações ilegais de folha de coca naquela parte do país foi em 2015. Naquele ano, Pablo Garcia, um líder indígena ticuna, escolheu não se deixar levar pelo desespero e entendeu aquele episódio, a erradicação das plantas, como uma metáfora.

O problema é que agora ele tem que enfrentar os madeireiros e traficantes de drogas que invadem seu território.

Essa cena para Pablo representou apenas uma coisa: um novo começo. Ele é talvez o único ou um dos poucos que ousa ser otimista em uma das fronteiras mais esquecidas do Peru. Ele não apenas decidiu optar por uma economia legal, mas escolheu, junto com três de seus companheiros, tornar-se um guardião da floresta. Desde esse momento, equipado com um telefone celular com GPS e um mapa de satélite, ele persegue os alertas de desmatamento sempre que eles aparecem em sua tela.

O problema é que agora ele tem que enfrentar os madeireiros e traficantes de drogas que invadem seu território. Ele sabe que não é mais apenas sua economia que está em jogo, mas também sua vida. 

QUADRO DE DESMATAMENTO REGISTRADO, COM A AJUDA DE UM DRONE, PELOS MONITORES AMBIENTAIS DO BUEN JARDÍN EM FEVEREIRO DESTE ANO. FOTO: MONITORES AMBIENTAIS DE BUEN JARDÍN.

Ele ainda se lembra de quando dois grupos de traficantes de drogas transformaram a comunidade de Buen Jardín de Callarú em um campo de batalha. “Eu era o apu (líder) da comunidade, estava realizando uma reunião com o professor e outras autoridades, e às 8 horas da manhã ouvimos que alguns botes estavam chegando aqui em quantidade, uma chalupa, eles estavam atirando. E o outro grupo, os que estavam no bote, foi até a comunidade e começou a correr armado, em direção àquela casa ali e os outros estavam atirando”. Isso aconteceu em 2014, um ano antes da segunda campanha de erradicação da coca nesta comunidade de Loreto localizada na província de Mariscal Ramón Castilla, distrito de Yavarí. Perguntamos a Pablo se ele teme que a violência volte à sua comunidade, e ele respondeu que sim.

“Eu era o apu (líder) da comunidade, estava realizando uma reunião com o professor e outras autoridades, e às 8 horas da manhã ouvimos que alguns botes estavam chegando aqui em quantidade, uma chalupa, eles estavam atirando.”

Pablo García

As ameaças são uma sombra persegue a este grupo de monitores ambientais. Eles são vistos como uma pedra no sapato daqueles que ganham a vida com o tráfico de drogas. Às vezes eles são também o muro que impede que as culturas ilícitas continuem avançando. Isto acontece em Buen Jardín, mas também em outras comunidades ticuna como Nueva Galilea e Cushillococha. As plantações de folha de coca se recuperaram após a última intervenção do Estado, a replantação é uma realidade e neste cenário surge uma questão: o que está em jogo quando se quer cuidar da floresta?

“Disse que ia nos matar”

Para viajar no início do ano para as comunidades indígenas do Baixo Amazonas, na tripla fronteira com Leticia e Tabatinga, cidades da Colômbia e do Brasil, é necessário se locomover o tempo todo de ‘peque-peques’, pequenos barcos rústicos que navegam diariamente na bacia amazônica. As chuvas elevam o nível dos rios, aparecem novas cochas (lagos) e é a melhor época do ano para conhecer as florestas inundadas da Amazônia peruana.

Para chegar à casa de Pablo Garcia tivemos que navegar, sem exageros, pelas ruas da comunidade. As estacas de sua casa ficaram afundadas debaixo d’água, é por isso que tivemos que pular no meio das escadas. Pablo estava esperando por nós, pronto para o patrulhamento. Botas altas de borracha, um jeans gasto, um estojo de celular pendurado em seu cinto, uma pequena mochila preta que ele carrega cruzada de um lado para o outro – como se ele tivesse o cuidado de não deixar nada prejudicar sua mobilidade – e aquele entusiasmo que é contagioso para aqueles ao seu redor.

Talvez devido a esse otimismo e coragem de enfrentar as tempestades, os habitantes de Buen Jardín o designaram apu da comunidade no período anterior. Hoje o cargo está nas mãos de outro ticuna, mas Pablo García, do cargo de secretário que ocupa agora, está envolvido em todas as decisões e tarefas de Buen Jardín. O respeito e a atenção com que o escutam é o de uma autoridade que ainda conserva.

A primeira coisa que ele fez quando nos viu foi nos dizer que há dois dias tinham detectado um novo fragmento de desmatamento: 30 hectares dos 1771 hectares que são parte da comunidade, plantados com culturas ilegais.

“Isso não estava lá e agora há só plantas de coca, não cultivamos quase coca. É território de Buen Jardín”, diz Pablo.

O desmatamento não passa mais despercebido a Pablo e aos outros monitores. Hoje eles conhecem muito bem os limites de seu território, não só porque o patrulham, mas também porque o viram pela primeira vez em um mapa de satélite. Todos os dias, com seus celulares e um aplicativo que lhes permite receber alertas, eles saem para verificar possíveis incursões em suas florestas.

Hoje eles conhecem muito bem os limites de seu território, não só porque o patrulham, mas também porque o viram pela primeira vez em um mapa de satélite

Naquela manhã eles nos guiaram para um dos fragmentos que mais os preocupa. O bote se movia lentamente ao longo de um riacho, contornando as árvores, os troncos, passando pelos raios de luz que penetravam suavemente através do dossel florestal. Seis pessoas a bordo de um ‘peque peque’ navegando pela selva inundada da comunidade.

Meia hora depois desembarcamos, caminhamos por 10 minutos, até que o verde claro das folhas de coca começou a nos envolver. Pablo tirou seus óculos de leitura e junto com Camila Flores, Miguel Rivera e Enoc Chanchari começaram a identificar o lugar. O GPS indicava que estávamos a poucos metros do fragmento, mas a água se tornou um obstáculo. Os monitores usaram um drone, que aprenderam a usar com a ajuda da Rainforest Foundation – uma fundação americana que os treinou no uso desta e de outras tecnologias – e o ativaram para mostrar o desmatamento.

O drone subiu sobre as copas das árvores e de repente um quadrante completamente desmatado apareceu na tela do telefone celular. Os paus no chão contrastavam com a vegetação abundante da área e as plantações de cacau da comunidade. Uma ilha de terra no meio de um verde intenso. Eles estimam que perderam mais 300 metros quadrados de floresta.

Quando receberam o primeiro alerta, em meados de 2008, eles foram imediatamente investigar a área.

Fomos até onde estava a fronteira de nosso território e encontramos um invasor que vive em Bellavista“, diz Pablo García. Disseram-lhe que trariam as autoridades, mas o invasor “continuava nos ameaçando, dizendo que ia nos matar”.

Como ele não saiu de seu território e as ameaças continuaram, Pablo García e Jorge Guerrero, o apu de Buen Jardín, foram conversar com o apu da comunidade ticuna de Bellavista de Callarú, cujo território faz fronteira com o deles.

“Não queremos que vocês entrem mais em nosso território e deteriorem nossa floresta. Já chega, parem com isso. Se você tem essa fazenda, cultive essa fazenda, mas não desmate mais minha floresta. Nosso território vai se tornar pampa”, narra Pablo que eles disseram ao apu de Bellavista e que ele concordou em parar o problema.

Mas Pablo voltou para Buen Jardín com muito pouca esperança, especialmente porque antes de entrar na reunião eles o tinham ameaçado novamente. 

“Não queremos que vocês entrem mais em nosso território e deteriorem nossa floresta. Já chega, parem com isso. Se você tem essa fazenda, cultive essa fazenda, mas não desmate mais minha floresta. Nosso território vai se tornar pampa”

Pablo García

“Você sabe, Pablo, agora mesmo eles vão te pegar, vão te amarrar e dar sua surra. Eu disse: ‘Por que vão me pegar e dar uma surra? Por acaso eu estou entrando em seu território? Não estou entrando em seu território, mas vocês se intrometeram e nós temos que cuidar desse assunto”. É assim que Pablo Garcia se lembra daquela cena que permanece fresca em sua memória.

Ele também não esquece as últimas palavras que lhe disseram antes de entrar na reunião: “Vamos enforcá-los”.

Os moradores de Buen Jardín nunca se cansam de repetir, quase como um mantra, que o tráfico de drogas ainda está presente em Bellavista.

Quando em 2014, o Projeto Especial Corah – responsável pela erradicação de cultivos ilícitos em todo o Peru – começou a operar na província de Mariscal Ramon Castilla, no Baixo Amazonas, erradicou uma área de 1.816 hectares de coca. Naquele ano eles não chegaram a Bellavista de Callarú. Mas um ano depois, em 2015, a intervenção foi muito maior e foram eliminados 13.805 hectares de coca na província e somente em Bellavista, 1.426 hectares distribuídos em 795 parcelas. As campanhas de 2014 e 2015, de acordo com o último relatório de monitoramento do cultivo de coca do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), reduziram os cultivos ilícitos na Baixa Amazônia para 370 hectares, mas em 2017 houve um replantio significativo e um aumento que atinge cerca 1823 hectares. A este número devem ser acrescentadas, além disso, as plantações de coca do ano passado.

“A maior concentração de cultivo foi encontrada nas comunidades de San José de Cochiquinas, Alto Monte, San Pablo, Cushillococha, Bellavista e Erene”, detalha o relatório do UNODC. Segundo a agência da ONU, a produção de coca está “ligada” ao mercado colombiano devido a dois fatores: “a ausência de galpões para a secagem” nesta área do Peru, o que sugere que a folha de coca é processada “verde” (como é costume na Colômbia), e a proximidade com a fronteira colombiana.

Isto coincide com as informações fornecidas por fontes policiais da área. Em uma conversa com Mongabay Latam, eles disseram que são os cidadãos colombianos que injetam dinheiro nas comunidades peruanas do Trapézio Amazônico para que eles plantem coca e depois comprar toda a colheita deles.

a produção de coca está “ligada” ao mercado colombiano

Pablo García e o apu Jorge Guerrero sustentam que em Bellavista eles são vistos como informantes do serviço de inteligência, da divisão de narcóticos, apesar de lhes terem explicado mais de uma vez que não informam à polícia, que só estão interessados em cuidar de sua floresta.

Por causa de ameaças como esta e da história de Bellavista, Pablo García está convencido de que as plantações de coca logo aparecerão no espaço recém-desmatado.

Entramos em contato com o apu de Bellavista, Teodoro Ayde Lozano, para perguntar-lhe sobre estas acusações. “Solicitamos uma expansão do território. Depois dessa expansão, na verdade é Buen Jardín que está invadindo as terras de Bellavista”, respondeu.

“O que Buen Jardín está denunciando é que está sendo plantada coca naquela área”, nós lhe dissemos. “Nada, apenas mandioca, nada mais”, respondeu o apu de forma contundente. “Aqui não acontece, as pessoas trabalham bem”, continua. A entrevista acontece dentro de sua casa e ele não para de olhar constantemente para a rua. Durante os 30 minutos da conversa, passaram pelo menos três cidadãos colombianos, saudando-o.  “Antes havia problemas, mas agora tudo está calmo”, conclui.

As coordenadas, porém, não mentem: essa floresta pertence a Buen Jardín de Callarú.

A chegada de um promotor

No final de 2018, o apu de Buen Jardín recebeu uma visita inesperada na comunidade. Um grupo de colombianos queria falar com ele.

-Havia muitos colombianos que me diziam: “Para com isso, apu, eu te dou uma grana, arranje mais terreno!” Isso foi no mês de outubro de 2018.

-Você se assustou?

-Sim, é por isso que eu também não aceitei. Eu não aceitei para que não começassem a destruição e depois o plantio da coca. Eles queriam me dar dinheiro. ‘Não’, eu lhes disse.

Fartos da pressão e das ameaças, os habitantes de Buen Jardín tomaram uma decisão: levar as provas reunidas a um procurador (ponto georreferenciado, fotografias e vídeos). O presidente da Organização Regional dos Povos Indígenas do Leste (Orpio) ajudou-os a canalizar sua denúncia, que chegou às mãos de Alberto Yusen Caraza, procurador provincial da Procuradoria Especializada em Assuntos Ambientais (FEMA) de Loreto.

O promotor Caraza chegou a Buen Jardín de Callarú no início de fevereiro deste ano, acompanhado de membros da polícia nacional. Eles não encontraram o invasor no local, mas percorreram a floresta e registraram imagens do desmatamento com a ajuda de um drone. Em uma entrevista com Mongabay Latam, o promotor da FEMA de Loreto disse que eles também detectaram “uma zona de perigo a 200 metros de distância, devido à presença de plantações de coca”.

O PROMOTOR ALBERTO CARAZA CHEGOU EM FEVEREIRO DESTE ANO A BUEN JARDIN DE CALLARÚ PARA CONFIRMAR A DENÚNCIA APRESENTADA PELA COMUNIDADE. FOTO: RAINFOREST FOUNDATION.

Após confirmar o desmatamento e reconhecer a presença de cultivos ilícitos, o promotor ambiental falou sobre a segurança na área. 

“Na área há um problema de segurança pessoal; é uma zona de cultivo de coca que é sempre vigiada por pessoas armadas”, disse Caraza, que acrescentou que esta não é a única denúncia deste tipo que receberam este ano.

Os habitantes de Buen Jardín não sabem o que mais fazer, e agora também têm que lidar com os 30 hectares de coca que surgiram recentemente em seu território. 

“Na área há um problema de segurança pessoal; é uma zona de cultivo de coca que é sempre vigiada por pessoas armadas”

Alberto Yusen Caraza

“Eles estão cortando até agora. Não sei como vamos resolver isso, terei que ir com o apu para conversar com as pessoas de Bellavista, para que eles não avancem mais aqui”, diz Pablo García, que sabe muito bem que a cada visita ele coloca sua vida em risco.

“Aqui não podemos falar abertamente sobre a máfia, não podemos falar”. Se formos denunciá-los à polícia, a polícia informa a eles. “Se você for comprar alguma coisa em Tabatinga (Brasil), ali eles te desaparecem”, confessa Pablo com resignação.

“Aqui não podemos falar abertamente sobre a máfia, não podemos falar”. Se formos denunciá-los à polícia, a polícia informa a eles. “Se você for comprar alguma coisa em Tabatinga (Brasil), ali eles te desaparecem”.

Pablo García

Em Bellavista, longe do medo incutido nos habitantes de Buen Jardín, há um ar de impunidade. No pequeno porto desta pequena cidade há barcos a motor estacionados, restaurantes, armazéns e lojas bem abastecidas, como em nenhuma outra comunidade de ticuna na região. Os testemunhos que conseguimos reunir indicam que colombianos e peruanos chegam todos os dias de diferentes partes da comunidade para trabalhar como ‘raspachines’, como são conhecidos aqueles que colhem folhas de coca, ou para trabalhar nos laboratórios de processamento estabelecidos dentro da comunidade, longe do núcleo do centro da população.

VISTAS DA COMUNIDADE DE BELLAVISTA DE CALLARÚ REGISTRADAS COM DIFICULDADE PORQUE HÁ RESISTÊNCIA DOS HABITANTES QUANDO ELES VÊEM PESSOAS TIRANDO FOTOGRAFIAS. FOTO: VANESSA ROMO.

Os poucos indígenas que ainda vivem em Bellavista preferem não contradizer o estilo de vida do resto dos habitantes, porque muitos desses colombianos e peruanos ficaram morando na comunidade. “A população está crescendo, há estrangeiros que vêm morar aqui e ficam com os ticunas”, diz Leonel Ayde, vice-prefeito da comunidade.

O processo de erradicação aqui seguiu o mesmo caminho que no resto do Trapézio Amazônico, já que após a intervenção do Corah e o fracasso das culturas alternativas, o replantio da folha de coca escalou. “Por aqui, a maioria das pessoas se dedica a isso porque não há alternativa”, diz Leonel. Ele está se referindo ao povo indígena. “Nós plantamos coca para sobreviver, porque se esperarmos pelos resultados do cacau, quanto tempo ele vai durar?”

Solicitamos uma entrevista com a Polícia Nacional do Peru, através de sua Diretoria de Comunicação e Imagem Institucional, para saber como eles controlam a violência e as atividades ilegais nesta área de fronteira, mas até o momento da redação desta reportagem não recebemos resposta.

“Nós plantamos coca para sobreviver, porque se esperarmos pelos resultados do cacau, quanto tempo ele vai durar?”

Leonel Ayde

Para Tom Bewick, diretor no Peru do projeto Rainforest Foundation, que equipou com tecnologia 36 comunidades indígenas em Loreto, incluindo Buen Jardín, os monitores ambientais que vivem na área são vulneráveis por causa do trabalho que fazem para conservar suas florestas.

“O importante para nós é que o Estado implemente ações para proteger os defensores ambientais indígenas que assumem a liderança na proteção de suas florestas”, diz.

Bewick explica que devido ao trabalho que eles fazem, que está na contramão dos interesses dos atores ilegais na área, os monitores são vistos como um perigo. É por isso que ele enfatiza a necessidade de manter um registro das ameaças e reunir mais provas para entregar às autoridades. “Acho que eles vão receber mais ameaças porque estão trabalhando para proteger, para conservar seu território”, conclui.

“Nós matamos os informantes”

Isaac Witancor e Leidi Valentín patrulham seu território a cada três dias, guiados pelos alertas de desmatamento que recebem em seus telefones celulares. Os dois vivem na comunidade ticuna de Nueva Galilea e enfrentam um enorme desafio: conservar mais de 2.787 hectares de floresta.

Entre 2001 e 2017, de acordo com relatórios da Rainforest Foundation, a comunidade perdeu mais de 682 hectares de floresta devido à incursão de invasores.

Isaac lembra que há seis meses, durante um de seus monitoramentos, eles se depararam com um grupo de colombianos que derrubavam as árvores de Nueva Galilea. “Eles cortaram e fizeram uma fazenda de cacau, bananas e, principalmente, cultivos ilícitos”, disse o monitor de 23 anos, que diz que dez pessoas, incluindo homens e mulheres, estão sempre percorrendo o território da comunidade.

“Eles vêm e se instalam, montam acampamento e trabalham lá. Nós vamos avisá-los, para que não toquem mais na floresta virgem, e fazemos este trabalho para que não haja mais invasores”

Isaac Witancor

“Eles vêm e se instalam, montam acampamento e trabalham lá. Nós vamos avisá-los, para que não toquem mais na floresta virgem, e fazemos este trabalho para que não haja mais invasores”, explica com preocupação.

Leidi Valentín, a única monitora feminina da comunidade, também lamenta a perda da floresta, mas especialmente porque ela ver como as aves, os caititus, as queixadas e as antas têm se afastado da comunidade. Aqueles gritos de que ela gosta tanto dos animais, só pode ouvi-los agora quando faz patrulhamento na floresta.

Como seu parceiro, Leidi detectou plantações ilegais em seu território.

– O que eles estão plantando?

–O que eles estão plantando é coca.

–Não é perigoso?

– Nós vamos a esse ponto, mas eles não estão lá, eles estão longe da fazenda. Agora há rumores de que estamos dando informações, e eles estão nos ameaçando. Eles falaram para meus colegas que eles eram “delatores” que algo poderia nos acontecer a qualquer momento, que não está certo porque nós damos informações.

Ser um monitor ambiental em uma área atingida pelo tráfico de drogas o torna vulnerável. Mas a esta jovem de 19 anos, obcecada em cuidar das florestas de Nueva Galilea, o perigo não a desanima.

“Agora há rumores de que estamos dando informações, e eles estão nos ameaçando.”.

Leidi Valentín

Nem Darwin Isuiza, o mais velho de todos os monitores ambientais de Nueva Galilea, que está ciente dos perigos que enfrentam durante as patrulhas, também não se incomoda.

“Às vezes eles dizem que nós somos informantes porque temos GPS, porque podemos dar informações. É o que eles estão me dizendo”, diz Darwin, que agora está considerando deixar seu trabalho como monitor. “Eles podem fazer algo comigo”.

Os habitantes da comunidade ticuna de Nueva Galilea se deslocam, inevitavelmente, em um território cinzento. Embora seja claro que eles querem conservar suas florestas e gostariam de viver de uma economia legal, por enquanto não encontraram um mercado estável para o cacau que produzem. Eles não têm para onde levá-lo e nenhum comprador, sem mencionar que uma boa parte dele acaba apodrecendo, como dizem, porque o Estado só os ajudou a administrar as colheitas.

VISTA DA COMUNIDADE DE BELLAVISTA DE CALLARÚ REGISTRADAS COM DIFICULDADE PORQUE HÁ RESISTÊNCIA DOS HABITANTES QUANDO ELES VEEM PESSOAS TIRANDO FOTOGRAFIAS. FOTO: VANESSA ROMO.

Isto os obriga, como dizem as autoridades comunitárias, a trabalhar pelo menos duas vezes por mês como “raspachines” de folha de coca. Em um aparente paradoxo, eles então investem parte do dinheiro que ganham em suas plantações de cacau.

A primeira coisa que Artemio nos diz quando lhe perguntamos sobre suas plantações de cacau é: “Nos estamos em crise”. Por razões de segurança, ele não quer revelar mais detalhes de sua identidade, mas nos diz que está farto de que o Estado os obrigue a cuidar de seu cacau, que lhes deem fertilizantes e que não lhes deem nenhuma ajuda para sobreviver. “Precisamos de dinheiro para tirar o cacau e para fazer isso temos que trabalhar com a coca”, confessa, com vergonha.

“Nos estamos em crise”

Artemio

Esta é a ironia da realidade com a qual eles têm que viver: para manter suas plantações de cacau, eles têm que ir e trabalhar com as plantações de coca.

Embora Nueva Galilea tente manter os invasores e as plantações ilegais fora de seu território, nos últimos anos eles sentem que estão perdendo a batalha e, ao longo do caminho, arriscando suas vidas.

Edinson Ney é o tenente governador da comunidade. Ele é colombiano e chegou há mais de dez anos após se casar com uma mulher ticuna de Nueva Galilea. Durante seu tempo na comunidade, ele confessa ter visto muitas coisas: desde a erradicação até o aumento do tráfico de drogas.

Hoje ele conta como é difícil enfrentar aqueles que invadem suas florestas.

“Agora você vai e diz algo a eles e eles respondem: ‘Nós matamos os informantes’. Eu não quero voltar para lá, não tenho vontade de ir”

Edinson Ney

“São as pessoas que têm dinheiro que chegaram há dois ou três anos e ganharam poder aqui. Agora você vai e diz algo a eles e eles respondem: ‘Nós matamos os informantes’. Eu não quero voltar para lá, não tenho vontade de ir”, diz Ney, para quem a situação é cada vez mais complicada. Alguns dias antes desta entrevista, diz, alguém foi morto no mato.

“Na semana passada houve uma morte lá, em Nueva Galilea, entre os colombianos. Quem matou foi um nativo, de Bellavista”, narra.

A violência se instalou em suas florestas, onde hoje têm medo de fazer patrulhamento. Uma situação da qual eles gostariam de fugir, mas para a qual são forçados a voltar para sobreviver.

“Não há mais nada para ganhar dinheiro aqui. Se não fosse pela coca, todas as casas da região, todos os barcos, desapareceriam. Se não houvesse coca, não haveria nada. O governo não dá nada aqui”.

Edinson Ney

“Quando você vai lá, você tem de ficar por uma semana inteira. E quando queremos, temos que ir com a esposa, com os filhos, com tudo, porque lá há café da manhã, almoço e jantar. E aqui, quando não há comida, lá eles dão comida. Pego meus filhos e os coloco no bote, até os cães comem lá”, diz ele sem se envergonhar. Edinson diz que para cada arroba de folha de coca coletado, eles recebem 0,70 centavos (menos de um dólar). Um menino de 11 anos pode ganhar cerca de 29 soles por dia (8 USD), uma mulher 56 soles (16 USD) e um homem 105 soles por dia (31 USD).

Ele deixa passar alguns segundos, olha-nos nos olhos e acrescenta: “Não há mais nada para ganhar dinheiro aqui. Se não fosse pela coca, todas as casas da região, todos os barcos, desapareceriam. Se não houvesse coca, não haveria nada. O governo não dá nada aqui”.

Os esquecidos da fronteira

Sara, uma mulher ticuna que nos pede para ocultar seu verdadeiro nome por razões de segurança, lembra-se muito claramente do dia em que a erradicação chegou a Cushillococha. Eram 7 horas da manhã e o som do alto-falante ecoava na casa de seus habitantes. A mensagem era clara e direta: o exército chegou, temos que enfrentá-los.

“A comunidade inteira participou, éramos 300 pessoas. Crianças, jovens, adultos, avós, todos. Eu não sabia o que ia acontecer, peguei meu bebê e cheguei. Os jovens começaram a confrontar a polícia. Os funcionários do Corah também. Não houve tanta gente ferida, mas houve muita confrontação, pancadas, troca de palavras. Dissemos-lhes que não é justo que eles nos façam essas coisas, que ganhemos a vida com isso”, diz Sara, que se lembra acima de tudo dos rostos desesperados do povo.

“Dissemos-lhes que não é justo que eles nos façam essas coisas, que ganhemos a vida com isso”

Sara

Ela, como a maioria dos ticunas de Cushillococha, temia a chegada da crise. “Por que eles estão fazendo isso conosco se somos o povo mais esquecidos de todos”, perguntou-se esta professora.

Ela lembra que um ano depois, chegou a Devida – a instituição governamental responsável pela estratégia nacional antidrogas – e o Pedicp – um projeto do Ministério da Agricultura que trabalha no desenvolvimento integral da bacia do rio Putumayo.

Ambas as instituições, segundo os entrevistados, propuseram os mesmos projetos a todas as comunidades: plantações de cacau ou mandioca, esta última para produzir farinha. Todos se lembram da intervenção da mesma maneira: a chegada dos promotores às comunidades, o treinamento, a grande quantidade de fertilizantes que lhes deixaram e a ausência de alimentos.

“Por que eles estão fazendo isso conosco se somos o povo mais esquecidos de todos”

Sara

“O que aconteceu com a Devida é que eles trouxeram muito material para trabalhar: fertilizantes, bombas, ferramentas”, explica o tenente governador de Nueva Galilea, para quem tudo estava bem até com isso. “O que eles – as comunidades – não imaginavam era que os alimentos não vinham com o equipamento, e todos descobriram que não havia alimentos para trabalhar. Naquele momento, todos entraram em crise”.

Para Pablo García de Buen Jardín, a pobreza nos distritos fronteiriços é imensa. Ele sobrevive vendendo suas bananas, mandioca e o cacau que aprendeu a processar artesanalmente. Ele o mói em casa e faz pequenas bolinhas de chocolate que depois vende em Tabatinga. Hoje ele tem três hectares de cacau em produção, mas ele reconhece que não é suficiente.

“Com dinheiro você ganha dinheiro, mas se não há dinheiro, como você vai ganhar dinheiro? Vivemos toda nossa vida neste estado em que estamos, queremos progredir, mas não há ninguém para nos apoiar. Nós cultivamos, fazemos tudo, mas… comércio?” Essa é a pergunta que todos estão fazendo.

“e todos descobriram que não havia alimentos para trabalhar. Naquele momento, todos entraram em crise”

Edinson Ney

Entramos em contato com a Devida para perguntar-lhes sobre a intervenção e como eles pretendem atender às necessidades das comunidades indígenas nos distritos de Ramón Castilla e Yavarí, mas eles se recusaram a dar uma entrevista.

O silêncio de Devida contrasta com as declarações do Ministro do Interior Carlos Morán, que há uma semana confirmou que serão realizadas ações de interdição no Trapézio Amazônico a partir deste mês até outubro. “Vamos erradicar 6200 hectares”, disse ele concisamente no contexto de um conflito social sobre o início da erradicação da coca em uma cidade do sul do Peru. Entretanto, segundo fontes no distrito de Ramón Castilla, a tensão sobre a iminente chegada do projeto Corah já está na comunidade, assim como foi quando eles chegaram pela primeira vez.

O general do PNP Victor Rucoba, diretor do Projeto Especial Corah – que depende do Ministério do Interior peruano – diz que a Devida deve se juntar ao esforço de erradicação, mas os recursos não são suficientes. Também não têm, explica ele, “a capacidade operacional para nos monitorar [Devida]. É mais difícil”.

“Vivemos toda nossa vida neste estado em que estamos, queremos progredir, mas não há ninguém para nos apoiar.”.

O site de Devida, no entanto, indica que sua estratégia está progredindo muito bem em pelo menos 15 comunidades indígenas na Baixa Amazônia. Ela anuncia o desenvolvimento de cadeias de produção farinha, desenvolvimento comunitário, treinamento de liderança, capacitação, assessoria técnica e muito mais. As três comunidades nativas que mencionamos neste relatório são apenas três delas. Entretanto, os habitantes das comunidades não notam as transformações, nem eram evidentes quando nós as visitamos.

“Há pessoas que se dedicam a plantar cacau e mandioca, mas nada vem disso”, diz Sara. Ela tem um irmão que, após a erradicação, se dedicou inteiramente ao cacau. Ele agora tem três hectares, mas para Sara “ele faz isso porque quer, o que saiu, apodreceu, porque Devida não compra. Agora ele está plantando coca novamente há um ano”.

Lorenzo Vallejos, chefe de assuntos ambientais do UNODC para o Peru e Equador, salienta que o planejamento é a base para um desenvolvimento alternativo bem-sucedido, e a pesquisa é a melhor ferramenta para este fim. “Uma maneira real de reverter o cultivo da coca é saber que tipo de produtos ou serviços podem ser competitivos para migrar da economia da coca para uma economia legal, com base em estudos de adequação do solo ou ferramentas como o ZEE (Zoneamento Ecológico e Econômico), e até mesmo através do desenvolvimento de planos de negócios”, diz.

“Uma maneira real de reverter o cultivo da coca é saber que tipo de produtos ou serviços podem ser competitivos para migrar da economia da coca para uma economia legal”

Lorenzo Vallejos

Somente se o Estado oferecer soluções viáveis e sustentáveis, acrescenta, as comunidades pensarão em deixar a coca, mesmo correndo o risco de ganhar menos. “Eles sabem que, com uma estrutura legal, não se preocuparão que as autoridades erradiquem suas parcelas, causando-lhes prejuízos”.

Em Buen Jardín de Callarú, Nueva Galilea e outras comunidades indígenas Ticuna, o esquecimento é visto nos detalhes: postos de saúde inexistentes e – se houver – sem medicamentos, escolas com três professores ensinando cinco séries diferentes na mesma sala de aula, serviços básicos que não são atendidos, dependência de uma economia ilícita para sobreviver à pobreza, falta de confiança nas autoridades, tráfico de drogas, e muitas vidas penduradas por um fio. Com tudo contra eles, sem ver uma oportunidade e com ameaças caminhando perto deles, um grupo de monitores ambientais insiste em conservar a floresta, aquela selva que se rende todos os dias ao som de uma motosserra para ser substituída mais tarde por plantações de coca.


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