O povo zenú de Córdoba sobreviveu à conquista e agora luta contra a indústria de mineração de níquel. As vozes, assim como a tradição oral indígena da região que se refere ao “grito da montanha”, são elevadas para encorajar-se mutuamente e contar o que está acontecendo. Irrael Aguilar, tradicional porta-voz dos indígenas zenú, conta a história da resistência de sua comunidade.
Em 19 de junho de 2018, em duas cidades distantes mais de 3.000 quilômetros, ocorreram dois assuntos relacionados à batalha travada pelas minorias étnicas contra o complexo de níquel Cerro Matoso S.A. localizado no departamento de Córdoba, no norte da Colômbia.
Em uma escola do município de San José de Uré, em Alto San Jorge (Córdoba), estava sendo realizada a consulta prévia que, após intensas lutas legais, foi ordenada pela Corte Constitucional da Colômbia. A decisão protege os direitos fundamentais à saúde e a um ambiente saudável das comunidades étnicas – indígenas zenú e afrodescendentes – que vivem na área de influência e impacto da mina Cerro Matoso.
No mesmo dia, em um escritório em Houston, Texas, um advogado pesquisava documentos que poderiam provar que a multinacional BHP Billiton deve responder pelos negócios de sua subsidiária South 32, para a qual transferiu o negócio de níquel colombiano em 2015.
Embora as minorias étnicas tenham conseguido que o sistema de justiça colombiano decidisse a seu favor, a proteção constitucional não as obriga a reparar os danos causados durante 37 anos. Por esta razão, eles confiam num plano B: que a BHP Billiton e a South 32 respondam civilmente pelos danos que a Cerro Matoso S.A. tem causado ao território após décadas de operação.
Uma descoberta a não esquecer
Dois anos antes da criação do departamento caribenho de Córdoba, em 1952, a sorte começou a sorrir para esta região colombiana com a descoberta da jazida de níquel. Em 1963, foi criada uma empresa com capital público-privado para explorar ferro-níquel.
Todos os olhos estavam voltados para o mineral e a gestão dos milhões em royalties do Estado. A mina chamou a atenção dos políticos de Córdoba, especialmente do senador Salomón Náder (agora falecido), por causa dos royalties que poderia trazer ao Estado, como Plínio Apuleyo Mendoza relatou no artigo “Compadrazgos peligrosos” (acordos perigosos), publicado em 26 de fevereiro de 1993 no jornal EL TIEMPO.
Surpreendentemente, em 4 de março de 1993, o ex-Ministro da Saúde da Colômbia, Amaury García Burgos, que tinha sido duas vezes governador de Córdoba, foi assassinado quando saiu da reunião da diretoria da Cerro Matoso S.A. no município de Montelíbano, na qual representava o Governo Nacional como membro suplente.
“O que foi feito com os 48 milhões de dólares que Córdoba recebeu em royalties? Alguém se interessou por este assunto. Ele decidiu investigá-lo: o Dr. Amaury García Burgos. Ele foi assassinado“
Jornalista Plinio Apuleyo Mendoza
O jornalista Toño Sánchez Jr., em seu livro Las Crónicas que no me Dejaban Contar (as crônicas que não me deixavam contar), conta como os jagunços planejaram o crime de García Burgos. “os cabeças do crime nunca foram condenados”, diz hoje sua filha, a senadora conservadora Nora García Burgos.
Vinte dias após o crime de García Burgos, o jornalista Plinio Apuleyo Mendoza perguntou em sua coluna regular no EL TIEMPO em 26 de março de 1993: “O que foi feito com os 48 milhões de dólares que Córdoba recebeu em royalties? Alguém se interessou por este assunto. Ele decidiu investigá-lo: o Dr. Amaury García Burgos. Ele foi assassinado, e sua família e amigos não têm dúvidas de que foi como consequência daquela investigação que ele empreendeu”.
A mina e seu contrato
A Cerro Matoso S.A. é uma empresa do setor mineiro-industrial pertencente à multinacional South32, dedicada à exploração e transformação do níquel contido no ferro-níquel, por meio de um processo de utilização de energia.
O níquel, combinado com o ferro, é utilizado para produzir aço inoxidável e é útil nas indústrias de aviação, equipamentos médicos e eletrônicos, entre outras. A Cerro Matoso S.A. exportou ferro-níquel para 18 países do mundo entre 2012 e 2018, de acordo com Import Genius.
“Até maio de 2015, a Cerro Matoso fazia parte do grupo BHP Billiton. Em 2015, completou-se o maior spin-off da história empresarial australiana, a causa disso, diferentes operações, colaboradores e empreiteiros selecionados saíram da BHP Billiton para conformar a companhia independente South32, uma empresa de mineração e metais globalmente diversificada”, relata a Cerro Matoso S.A. em um documento fornecido para esta matéria.
A Agência Nacional de Mineração (ANM) confirma que, de acordo com o ponto cinco da emenda Nº 4 do contrato 051-96M assinado entre a Cerro Matoso S.A. e o Governo, a operação da mina estará em vigor por um prazo de 30 anos, de 1999 a 2029. Além disso, em virtude do da emenda Nº 4, ele poderia ser prorrogado por mais 15 anos, ou seja, até agosto de 2044, desde que a capacidade de processamento de minério aumentasse de 3 milhões de toneladas secas por ano para 4,5 milhões.
Este é um ponto que tem sido questionado pelas comunidades da área, que argumentam que a emenda modificou os contratos que regem as operações de mineração, portanto a licença ambiental tinha que ser reprocessada porque os impactos ambientais seriam diferentes, somando-se aos que já tinham sido denunciados e que ninguém atendeu.
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37 anos de gritos afogados
Foram necessárias quatro décadas para que as comunidades zenú e afrodescendentes fossem escutadas. Ramón Carvajal Ávila, fundador da aldeia Unión Matoso, mais conhecida como Pueblo Flecha, no município de Montelíbano, viu desaparecer espécies da fauna e viu secar as fontes de água, associado – segundo ele – ao início da mineração de níquel pela empresa Cerro Matoso S.A.
“Isto era uma floresta. Havia cinco córregos: Aguazul, Zaíno Macho, Pueblo Río, La Bertel e Junco. Havia pacas, caititus, veados e capivaras. E agora, de tempos em tempos, somente capivaras… Estes riachos eram ricos em peixes: dourada, blanquillo, traíra, mojarra, e havia uma espécie de tartaruga. Vivíamos da caça e da agricultura. Neste momento o que vemos é ‘aridez’, as florestas estão esgotadas. A empresa arrasou todas as árvores”, diz Ramón Carvajal.
“Neste momento o que vemos é ‘aridez’, as florestas estão esgotadas. A empresa arrasou todas as árvores”
Ramón Carvajal
O homem fundou a aldeia aos 26 anos de idade, tinha sido deslocado pela avalanche do riacho Uré, que afetou a comunidade de Versalles. Com os outros indígenas zenú, eles construíram suas casas em uma colina, em um hectare de terreno doado pelo fazendeiro José Arboleda.
Unión Matoso ou Pueblo Flecha fica perto da Cerro Matoso, a 902 metros da mina, de acordo com a sentença T-733 da Corte Constitucional de 2017. A poeira com resíduos químicos chega a suas casas e se espalha com os ventos pelos riachos e entre as casas dos moradores, fazendo com que adoeçam, diz Carvajal Ávila. A empresa informou à Corte uma distância de 3.719 metros.
Os gritos das comunidades da região não puderam ser ouvidos além do Alto San Jorge. Também não foram ouvidas as vozes dos trabalhadores da mina, que denunciaram complicações de saúde, que – segundo eles – nunca foram certificadas pela empresa como riscos ocupacionais.
Victor Pineda trabalhou na mina de 1982 a 2003 e diz: “Saí (da empresa) por causa de problemas de saúde. Desde aquele tempo até agora, tenho estado em tratamento contínuo”. Explica que ele e 69 outros trabalhadores apresentaram reclamações em 2008. Eles procuraram o advogado Adolfo Elles, que em 2012 entrou com uma ação coletiva. “Desde então, seis colegas morreram de câncer”, diz Victor. A justiça ainda lhes deve uma decisão sobre o mérito de seus casos.
Quase sete anos após a ação ter sido movida, a juíza Gladys Arteaga Díaz, em primeira instância, negou as reivindicações da ação judicial dos antigos trabalhadores. Entretanto, na página 55 ela afirma que “esta unidade judicial considera que há provas suficientes para considerar que existe uma relação causal entre as doenças de muitos trabalhadores da empresa Cerro Matoso S.A. e a exposição ao risco no trabalho”. Advogados e antigos trabalhadores estão cruzando os dedos para uma decisão favorável em segunda instância e eventualmente uma revisão na Corte Constitucional.
“esta unidade judicial considera que há provas suficientes para considerar que existe uma relação causal entre as doenças de muitos trabalhadores da empresa Cerro Matoso S.A. e a exposição ao risco no trabalho”
Juíza Gladys Arteaga Díaz
Os indígenas não ficaram sem fazer nada: começaram a exigir que o governo nacional realizasse uma consulta prévia, conforme exigido pela Convenção 169 sobre os povos indígenas da Organização Internacional do Trabalho das Nações Unidas, que a Colômbia assinou e depois incorporou à sua legislação com a Constituição de 1991.
A consulta prévia é o consentimento formal das comunidades para os projetos a serem desenvolvidos nos territórios onde eles estão estabelecidos ou pelos quais transitam.
De acordo com Javier de la Hoz, sócio do escritório De la Espriella Lawyers Enterprise e advogado dos indígenas, as duas respostas do governo nacional às comunidades étnicas impediram uma consulta prévia. “Primeiro, que a consulta prévia não devia ser realizada porque o negócio de níquel já estava em operação; e segundo, que eles deviam ser constituídos como uma reserva (chamada de resguardo) perante o Ministério do Interior e somente após este reconhecimento político e legal seriam interlocutores válidos com diante a Cerro Matoso S.A.”.
“E assim o fizemos. Nós constituímos o resguardo, e isso nos custou muito”, diz Irrael Aguilar, tradicional porta-voz do Resguardo Alto San Jorge Zenú. “O processo de criação da reserva começou em 1996, quando o extinto Instituto Colombiano de Reforma Agrária (Incora) realizou estudos iniciais para analisar as necessidades de terra das comunidades indígenas do sul de Córdoba. Em 1998 foram entregues as primeiras seis parcelas e em 1999 foi entregue a última parcela, a fazenda San Nicolás. Em 2000, a primeira assembleia foi estabelecida para continuar o resto”, explica Aguilar. Finalmente, a reserva foi criada através do Acordo 336 de 27 de maio de 2014 pelo Ministério do Interior.
O acordo foi conseguido depois de uma manifestação indígena nos arredores da empresa Cerro Matoso em Montelíbano, que ocorreu desde 25 de setembro até 30 de outubro de 2013, quando foi assinado um memorando de entendimento.
Esta luta pela criação da reserva significou dor e lágrimas para Irrael Aguilar e sua comunidade. Entre 2004 e 2015, 48 membros foram assassinados. Dez deles estavam diretamente ligados às lutas pelo reconhecimento político e pela proteção do território, razão pela qual desempenharam um papel crucial, de acordo com as denúncias da comunidade, inclusive conforme documentos do Centro de Pesquisa e Educação Popular (Cinep).
A reserva Alto San Jorge, integrada por de 5 comunidades, tem uma população de 1.301 pessoas. Entretanto, a área de influência de Cerro Matoso é habitada por mais de 2.000 pessoas, incluindo os membros do Conselho Comunitário das Comunidades Negras de San José de Uré, de acordo com a decisão da Corte Constitucional de 2017.
A reserva ocupa 960 hectares dos municípios de Montelíbano, Puerto Libertador, San José de Uré e La Apartada, na região geográfica conhecida como San Jorge pelo rio que a atravessa. As quadrilhas criminosas estão ativas na área, que são grupos residuais do tráfico de drogas e do paramilitarismo que habitam na região desde a década de 1970. “Tem havido um processo sistemático de ameaças, perseguição e assassinato de líderes indígenas”, diz Irrael Aguilar.
Em 6 de outubro de 2009, o chefe da polícia da reserva, Emiro Manuel de la Rosa Polo, foi assassinado no bairro 26 de Julio de Montelibano. O crime ocorreu na presença de sua esposa e dois filhos. Ele tinha um grande poder de convocação nas comunidades e um enorme conhecimento da luta pela constituição da reserva.
O silêncio acabou se impondo em uma grande parte do território devido à ausência de justiça. Um direito de petição enviado à Procuradoria Geral, para esta matéria, perguntando sobre a situação das investigações dos assassinatos em Alto San Jorge, mostra que dos crimes cometidos entre 2009 e 2018 naquela área, 45 no total: 20 casos estão inativos e arquivados; 1 caso inativo com uma condenação; 2 casos na fase de inquérito; 8 casos em fase de investigação; em 3 casos aguardam-se novas decisões do mérito por parte do Ministério Público, uma vez que os possíveis perpetradores não foram identificados ou individualizados, e 11 casos não têm registro no sistema do Ministério Público.
Eles começam a serem ouvidos
As ações judiciais contra a Cerro Matoso S.A. são antigas e começaram nos tribunais ordinários de Montería, com duas medidas de proteção que levaram a decisões do Tribunal Superior daquela capital em 15 de julho de 2013. Essas decisões foram revistas pela Corte Constitucional da Colômbia quatro anos depois.
Em 15 de dezembro de 2017, a Corte emitiu a de sentença T-733, no qual manteve os direitos fundamentais à consulta prévia, à saúde e ao gozo de um ambiente saudável das comunidades étnicas de Bocas de Uré, Centro América, Guacarí-La Odisea, Pueblo Flecha, Puente de Uré, Puerto Colombia, Torno Rojo e o Conselho Comunitário de San José de Uré.
Em essência, a Corte ordenou que fossem estabelecidas medidas de prevenção, mitigação e compensação ambiental com respeito aos danos que poderiam ser causados pela continuação das obras extrativas da empresa Cerro Matoso S.A.
Começaram a ser ouvidas as reivindicações de Irrael Manuel Aguilar Solano, que na época era o cacique maior do Resguardo Zenú do Alto San Jorge; e de Luis Hernán Jacobo Otero, presidente do Conselho Comunitário das Comunidades Negras de Uré. Irrael Aguilar é atualmente líder e porta-voz que participa da consulta em nome do Resguardo.
Na decisão, a Corte ordenou que fosse realizada uma consulta prévia a respeito da assinatura da Emenda nº 4 de 2012 do Contrato nº 051-96M da Cerro Matoso; da duração estimada das atividades de exploração e execução em todo o complexo mineiro; e das conclusões contempladas em termos de impactos ambientais e sanitários.
Entre as estratégias específicas de proteção, a Corte ordenou a inclusão de medidas para descontaminar o ecossistema (ar, solo e corpos de água); a adoção de métodos técnicos para evitar a elevação e dispersão de material particulado; a restauração da bacia hidrográfica do Caño Zaino; o restabelecimento da capacidade produtiva das terras afetadas; a recuperação da paisagem; e o isolamento do complexo mineiro por meio de barreiras artificiais ou naturais.
A sentença incluiu relatórios da Controladoria Geral que alertaram que a Cerro Matoso S.A. não possuía uma licença ambiental que incluísse de forma abrangente as atividades de exploração que estavam sendo desenvolvidas e planejadas. Que a licença ambiental concedida em 1981 à empresa não delimitava áreas de exploração nem previa medidas de mitigação e compensações ambientais. Também não estabeleceu um limite para a quantidade de material explorado, nem estabeleceu fórmulas de controle e acompanhamento. Em resumo, a Controladoria indicou que a licença concedida na época pela Corporação Autônoma e Regional dos Vales de Sinú e San Jorge (CVS) – a autoridade ambiental regional – tinha perdido sua validade a partir de 1º de outubro de 2012, uma vez que não estava em conformidade com as normas constitucionais em vigor.
Quando perguntada sobre a licença ambiental, a Agência Nacional de Mineração (ANM) respondeu: “Não é verdade que o projeto de mineração desenvolvido pela Cerro Matoso não tenha um instrumento ambiental em vigor que proteja seu desenvolvimento”.
María Claudia García, vice-ministra de políticas ambientais e padronização do Ministério do Meio Ambiente, disse que “a Corte Constitucional não suspendeu as atividades da empresa, observando que ela pode continuar operando sob a licença ambiental que possui, mas que, uma vez realizado o processo ordenado por ela, a empresa deve obter, para continuar sua operação, uma nova licença ambiental“. Isto também é confirmado pela Autoridade de Licenciamento Ambiental (ANLA).
E os problemas de saúde?
A sentença T-733 de 2017 da Corte Constitucional reviu três aspectos. Por um lado, os relatórios do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses que confirmaram a presença de contaminação por níquel no ar e em corpos de água, acima dos valores permitidos; assim como a descrição da Controladoria Geral sobre a presença recorrente de emissões descontroladas e nuvens de escória que chegavam aos vilarejos vizinhos, e o relatório detalhado da Ouvidoria.
Para o estudo, a Medicina Legal, entidade que realizou exames médicos, toxicológicos e radiológicos dos membros das comunidades étnicas que habitam os municípios de San José de Uré e Puerto Libertador, constatou que os habitantes de Pueblo Flecha foram afetados por doenças da pele.
“Ninguém estava interessado no que nos aconteceu e é por isso que continuamos lutando”
Irrael Aguilar, o porta-voz dos zenú
Apesar de tudo isso, os estudos dos efeitos sobre a saúde não foram sistemáticos para estabelecer a relação de causa e efeito entre a exploração do níquel e os problemas ambientais denunciados há muitos anos e repetidamente pelas comunidades e trabalhadores.
Irrael Aguilar, o porta-voz dos zenú é claro: “Ninguém estava interessado no que nos aconteceu e é por isso que continuamos lutando”.
A este respeito, a Corte, em sua sentença T-733 de 2017, ordenou ao Ministério da Saúde e Proteção Social: realizar uma avaliação médica das pessoas que estão registradas no censo do Ministério do Interior como membros das comunidades Bocas de Uré, Centro América, Guacarí- La Odisea, Pueblo Flecha, Puente Uré, Puerto Colombia, Torno Rojo, bem como do Conselho Comunitário das Comunidades Negras de San José de Uré; e construir o perfil epidemiológico dessas comunidades e de seus membros, e apresentar o relatório ao Tribunal Administrativo de Cundinamarca.
Também ordenou à empresa Cerro Matoso S.A. que prestasse assistência médica abrangente e permanente às pessoas registradas no censo do Ministério do Interior como membros das comunidades.
Finalmente, a Corte ordenou a criação de um Fundo Especial Etnodesenvolvimento a fim de compensar as comunidades. A figura jurídica foi chamada de “condenação em abstrato”; ou seja, ordenar o pagamento dos danos causados.
O revés da Corte
Após a decisão da Corte, as comunidades comemoraram, Irrael comemorou. A Cerro Matoso S.A. reagiu e entrou com um pedido para anular a decisão. As comunidades estavam preocupadas.
A Procuradoria Geral solicitou aos juízes da Corte Constitucional que negassem o pedido de anulação apresentado pela Cerro Matoso S.A., mas o Ministério Público não foi ouvido.
A juíza Cristina Pardo Schlesinger – que chegou à Corte Constitucional em 2017 depois de ter sido secretária jurídica do ex-presidente Juan Manuel Santos, cujo governo promoveu a chamada “locomotiva mineira” – assinou a sentença T-733, que obrigou a Cerro Matoso a estar em conformidade com a lei, mas salvou seu voto sobre o que tinha a ver com a criação, financiamento e operação do fundo especial etno-desenvolvimento.
Nove meses depois, em 20 de setembro de 2018, a juíza Pardo também assinou a ordem 616, que anulou parcialmente alguns aspectos dessa decisão, incluindo o fundo etno-desenvolvimento. O jornal EL TIEMPO procurou a juíza Pardo para saber mais das razões que ela tinha para assinar a ordem, mas a assessoria de imprensa da Corte se limitou a dizer que “a juíza tem dificuldades para falar com a mídia e mais ainda sobre esses casos”.
Enquanto isso, os juízes Diana Fajardo Rivera e Alberto Rojas Ríos assinaram a ordem 616, mas deixaram por escrito seu desacordo com ele, considerando que as discussões substantivas resolvidas na sentença T-733 de 2017 não devem ser reabertas.
A frustração de Irrael Aguilar, líder Zenú, e Luis Hernán Jacobo, defensor do conselho comunitário afro, ficou evidente diante da decisão da Corte, pois eles ficaram sem nenhum recurso legal.
O que a Corte fez? Anulou excepcionalmente, por meio de uma ordem, três pontos de uma sentença final.
A primeira foi a sentença contra a empresa de mineração, que a obrigou a pagar pelos danos causados às comunidades. Na ordem, a Corte considerou que existem outros meios judiciais mais adequados do que a tutela para reivindicar danos.
A segunda, a obrigação de criar um fundo especial de etno-desenvolvimento para a reparação e compensação das vítimas a partir de uma perspectiva coletiva e étnica.
A terceira foi a seção que declarou que se a Cerro Matoso S.A. não cumprisse a sentença T-733, estaria sujeita a uma possível suspensão das atividades extrativistas.
A consulta prévia que a Cerro Matoso S.A. deve pagar de seu próprio bolso, que, segundo informações não oficiais não confirmadas pelo Ministério do Interior, é estimada em $3,7 bilhões de pesos (1,1 milhões de dólares) somente custos logísticos ou metodológicos. Este portfólio foi consultado sobre este e outros aspectos desde 27 de fevereiro de 2018 através de um pedido de informações, mas nunca respondeu.
É importante observar que dentro dos 3,7 bilhões de pesos, as medidas de compensação não estão incluídas, pois estas resultarão da identificação de impactos na consulta.
A consulta prévia deve ser realizada com todas as comunidades étnicas da área de influência, para a qual a Corte concedeu um prazo de um ano, até setembro de 2019. O Tribunal Administrativo de Cundinamarca autorizou uma prorrogação da consulta através da ordem de 4 de março de 2019, por mais cinco meses, ou seja, até fevereiro de 2020.
Nem a Cerro Matoso S.A. nem a empresa controladora South 32 quiseram conceder uma entrevista direta para falar sobre o cenário intricado, solicitada desde 21 de fevereiro de 2019. Na sexta-feira 5 de abril, enviaram um documento de quatro páginas chamado ‘relatório branco’ (‘white paper’ no inglês), no qual eles expõem suas razões para pedir a anulação de alguns aspectos da sentença T-733.
Em relação à questão dos efeitos na saúde, o relatório branco afirma que “a Corte interpretou erroneamente o relatório médico emitido pelo Instituto Colombiano de Medicina Legal, o qual declarou clara e inequivocamente que não é conclusivo, pois não foi estabelecida uma relação causal direta entre as doenças encontradas na população e as atividades da Cerro Matoso”.
Com relação à consulta prévia, a Cerro Matoso indicou que “oito processos de consulta distintos estão sendo realizados com sessões individuais em cada uma das comunidades determinadas: Cabildos Unión Matoso de Pueblo Flecha; Puente Uré, La Libertad – Puerto Colombia, Centro América, Boca de Uré, Torno Rojo, Guacarí-La Odisea e o Conselho Comunitário das Comunidades Negras de San José de Uré. 120 ‘sabedores’ comunitários e 24 técnicos comunitários foram nomeados para apoiar as próximas fases do processo”.
A Cerro Matoso informou que processos adicionais de consulta estão sendo realizados com comunidades não protegidas pelas sentenças; seis comunidades camponesas e uma comunidade afro-colombiana.
E finalmente em relação à licença ambiental, a empresa disse que “já solicitou os termos de referência para a nova licença à autoridade ambiental (ANLA) e está trabalhando neles”, o que daria razão à posição da Controladoria Geral da República.
Consulta e Plano B
As reuniões de consulta prévia que se realizaram em Alto San Jorge foram tensas. Duas cenas ilustram o nível de tensão nas reuniões.
A primeira ocorreu em 26 de setembro de 2018 nas aldeias do Centro América e Torno Rojo, onde foi realizada outra reunião da consulta prévia. De acordo com a ata, Sergio Hernández participou como delegado do Ministério do Ambiente. Os governadores indígenas denunciaram por escrito que, entre 2007 e 2008, Hernández foi consultor da empresa K2, contratada pela Cerro Matoso para monitorar a qualidade do ar no território.
A denúncia consta de uma carta enviada em 1º de outubro de 2018 ao ministro do ambiente, Ricardo Lozano, na qual lhe pedem que retire de seu posto seu delegado na consulta.
María Claudia García, a vice-ministra do Ambiente, confirmou a EL TIEMPO que, em resposta à reclamação, outro funcionário foi nomeado para não “esfriar o ambiente”.A segunda cena ocorreu em 28 de novembro de 2018, durante o encontro na casa comunitária Puente de Uré, no município de San José de Uré. Segundo a ata, a reunião contou com a presença de quatro pessoas representando os interesses da Cerro Matoso S.A. e uma delas foi o advogado Sebastián Cabrales Villalba, que foi funcionário da Agência Nacional de Mineração (ANM).
De acordo com seu currículo público na rede Linkedin, Cabrales está efetivamente listado como assessor externo da Cerro Matoso desde maio de 2018 e assessor jurídico da South 32 desde março de 2017. Um ano antes tinha sido consultor jurídico externo da ANM, contratado por $86.000.000 (cerca de 28.000 dólares) para tratar de questões ambientais, de gestão social e de consulta prévia relacionadas à atividade mineradora nos territórios.
As comunidades fizeram sérias objeções ao fato de que um assessor da Cerro Matoso S.A., sentado para negociar em nome da empresa, tenha tido um relacionamento com a agência governamental que entrega títulos de mineração, monitora contratos de concessão e geralmente fornece orientação ao setor de mineração. Não houve resposta formal a esta reclamação feita pelas comunidades.
Para os porta-vozes indígenas e afro, os dois casos exemplificam a “porta giratória”: embora não existam problemas legais com a mobilidade dos profissionais entre os setores público e privado, para os reclamantes é claro que existem conflitos éticos e de interesse. E, eventualmente, uma possível violação do código de ética do advogado.
E justamente por causa destes aspectos, que na opinião das minorias étnicas prejudicam a transparência do processo, elas têm um Plano B: contaram com seu advogado para buscar garantias em outros cenários, tais como os tribunais dos Estados Unidos.O advogado De la Hoz, com um escritório especializado em Nova Iorque, está estudando as possíveis responsabilidades da BHP Billiton ou de sua subsidiária, com base no documento que encontraram no escritório de Houston, que declara na página 185:
A BHP Billiton assumirá e será responsável por todas as obrigações relacionadas à BHP Billiton Businesses e às antigas BHP Billiton Businesses e a BHP Billiton Limited assegura o Grupo South32 contra todas as reclamações e responsabilidades relacionadas a essas empresas (indenizações separadas também se aplicam sob alguns dos acordos de venda relacionados com a Reestruturação Interna).
A South32 assumirá e será responsável por todas as obrigações relacionadas às South32 Businesses e às antigas South32 Businesses e indeniza o Grupo BHP Billiton contra todas as reclamações e responsabilidades relacionadas a essas empresas (indenizações separadas também se aplicam sob alguns dos acordos de venda relacionados com a Reestruturação Interna).
A South 32 está listada na bolsa de valores australiana e é ativa nos mercados de Londres e Johanesburgo. O grupo BHP Billiton está listado nas bolsas de valores da Austrália e Nova Iorque.
Território disputado
As reuniões ordenadas pela Corte Constitucional Colombiana acontecem em um território ameaçado por atores armados. Em meados de fevereiro de 2019, treze dias depois que a equipe jornalística visitou e entrevistou líderes e membros das comunidades zenú e afro para esta matéria, panfletos ameaçadores foram espalhados pela região do Alto San Jorge contra várias pessoas, incluindo o líder zenú Irrael Aguilar. Em um deles, os membros do resguardo são marcados como “aproveitadores” e anunciam: “Vamos pegar vocês”.
Entre março e abril de 2019, mais de 2.000 pessoas do território foram deslocadas para os centros urbanos de Puerto Libertador e Montelíbano porque as quadrilhas criminosas as ordenaram, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários.
Apesar de tudo, as comunidades zenú e os afrodescendentes garantem que não desistirão de suas reivindicações, como afirma Irrael Aguilar. O caso, para eles, exemplifica o divórcio entre o desenvolvimento territorial e o desenvolvimento mineiro que tenta uma aproximação através de uma consulta prévia, ainda mas falta muito.