Os camponeses que querem desligar as motoserras em Guaviare

Em Guaviare, o terceiro departamento com maior índice de desmatamento da Colômbia, camponeses e colonos impulsionam iniciativas de conservação e aproveitamento sustentável da floresta amazônica, na contramão de atividades mais rentáveis e populares porém prejudiciais: a pecuária extensiva e o cultivo da coca.

Há quatro anos que María Gaitán não derruba uma árvore. Fê-lo quando comprou sua fazenda e levou gado assim como faziam seus patrões, para quem trabalhava colhendo folha de coca. Hoje, conserva um encrave de floresta que resiste à pecuária e aos cultivos ilícitos, principais atividades econômicas em Guaviare, um dos departamentos amazônicos da Colômbia com maiores índices de desmatamento. 

“Isso foi o que nos ensinaram, e essa foi nossa maneira de viver, porque outros faziam. Olha para a pastagem, era só floresta. Isto não era uma pastagem limpa”, diz a mulher de 35 anos olhando para a paisagem onde ela vive,  uma área próxima de afloramentos rochosos de alto valor turístico que se encontram no meio de “um mosaico diversificado de florestas, savanas e arbustos que abrigam elementos da região da Orinoquia, dos Andes, da Amazônia e do Escudo Guianês”, como descrito em um rápido inventário feito por cientistas de diferentes instituições e organizações sociais em 2017.

É precisamente por causa de seu conhecimento da localidade que hoje María lidera, junto com seu parceiro, Olmes Rodríguez, um projeto de conservação e uso sustentável da floresta, desde sua fazenda El Sinaí.

“Eu mesmo costumava desmatar a floresta. Eu fiz contratos para derrubar 10, 12, 15 hectares, e derrubava com uma motosserra”, diz Olmes Rodríguez, que chegou aos 17 anos a Guaviare, vindo de San Pedro de Jagua, na zona rural de Ubalá, Cundinamarca, no centro da Colômbia, atraído pela “ambição gerada pela coca”. Primeiro, ele colheu folhas de coca; depois, trabalhou no processo de produção da pasta à base de cocaína. Finalmente, ele teve um terreno onde cultivava plantas da coca.

Mas apostar na conservação e no uso sustentável da terra também implica para os camponeses riscos, estigmatização e ameaças que às vezes pretendem dissuadi-los de denunciar crimes, e outras vezes desencorajam seus esforços para proteger os ecossistemas florestais em que vivem.

Para chegar à fazenda El Sinai, na localidade de Tortugas, é preciso viajar três horas de motocicleta desde San José del Guaviare, a capital do departamento, e atravessar a aldeia El Capricho, por estradas de terra que podem ser uma tortura no inverno. A paisagem é dominada pelas fazendas de gado, exceto por um trecho da Serranía de La Lindosa que se caracteriza por suas imponentes formações de pedra, pinturas rupestres pré-hispânicas e canais com plantas aquáticas carmesim que se tornaram destinos turísticos.

O mesmo acontece em duas outras rotas importantes: a que vai para o sul de San José em direção ao município Calamar, e a une Calamar a Miraflores. A pecuária extensiva cobre quase tudo e a apropriação de terras ameaça com novos colonos. Tudo isso no meio da Amazônia colombiana.

A posição do Estado tem sido historicamente ambígua em Guaviare. Por um lado, em 1959 ordenou tudo o que hoje é o departamento como área de reserva florestal coberta pela Lei Segunda; por outro lado, incentivou a colonização camponesa nessa reserva, como também consta no inventário rápido, onde se explica que “a população atual está há 100 anos ou menos nesta região” de El Capricho e que seu “povoamento mais importante ocorreu a partir de 1968, quando o Governo Nacional encorajou a colonização dirigida, com o objetivo de povoar amplos terrenos baldios do país”.

Guaviare. Foto: FCDS.
ÁREAS DE FLORESTA DESMATADA PARA A PASTAGEM NA ESTRADA CALAMAR-MIRAFLORES, CONSIDERADAS ILEGAIS PELAS AUTORIDADES. FOTO: FUNDAÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (FCDS)

Entre a conservação e a colonização

María Gaitán e Olmes Rodríguez falam sobre seu passado de corte de árvores em pequena escala desde um pedaço de floresta virgem que ela mantém no meio de seus próprios pastos e de fazendas de gado vizinhas.

Eles também falam de seu futuro: a silvicultura comunitária, a forma sustentável de usar a floresta para fins lucrativos. Começaram em 2018 e já trabalham com 110 famílias de sete comunidades da aldeia.

Antes de se tornarem um casal, os dois já ocupavam posições de liderança: Gaitán era coordenadora da Rede de Mulheres Comunais de El Capricho; e Rodríguez, presidente da Associação de Conselhos de Ação Comunal da mesma cidade. Mas foi no ano passado, em um encontro de conservação, que sua preocupação com o meio ambiente os uniu.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
A PAIXÃO POR CUIDAR DO MEIO AMBIENTE UNIU OLMES RODRÍGUEZ E MARÍA GAITÁN. JUNTAMENTE COM DEZENAS DE OUTRAS FAMÍLIAS, ELES ESTÃO APOSTANDO NA CONSERVAÇÃO DIANTE DAS PRESSÕES DE UM AMBIENTE EXTRATIVISTA. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Antes de se tornarem um casal, os dois já ocupavam posições de liderança: Gaitán era coordenadora da Rede de Mulheres Comunais de El Capricho; e Rodríguez, presidente da Associação de Conselhos de Ação Comunal da mesma cidade. Mas foi no ano passado, em um encontro de conservação, que sua preocupação com o meio ambiente os uniu.

Cercados por árvores de açaí, patauá, abarco e cedrorana, todas nativas da Amazônia, o casal falou em montar um viveiro e recuperar a floresta que haviam derrubado. Não tão longe, uma motosserra pode ser ouvida.

Essas são as duas faces do departamento, que atingiu seu nível mais alto de desmatamento em 2017, 38.221 hectares cortados, de acordo com dados do Sistema de Monitoramento da Floresta e do Carbono do Instituto de Hidrologia, Meteorologia e Estudos Ambientais (Ideam). Esse recorde histórico ocorreu exatamente um ano após a assinatura do Acordo de Paz entre o governo de Juan Manuel Santos e o grupo guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). O número representou um aumento de 233% em relação ao ano anterior, e um total de 17% do contabilizado em todo o país nesse ano (220.000 hectares). Estes números alarmantes colocaram Guaviare como o segundo departamento mais desmatado, só perdendo para Caquetá, com o qual compartilha uma fronteira.

Desde então, os números continuam alarmando. Em 2018 a estimativa caiu para 34.527 hectares e para 2019 ainda não há números oficiais, embora a iniciativa de Conservação da Amazônia-ACCA MAAP estime que estes representem um “possível grande declínio na Amazônia colombiana após um recente boom de desmatamento”.

Os índices de desmatamento são altos, mesmo quando em Guaviare deveria, por regulamentação, prevalecer a conservação. Da zona de reserva florestal estabelecida em 1959, foram posteriormente estabelecidas outras áreas especiais: uma zona de reserva camponesa, várias reservas indígenas e dois parques nacionais: Nukak e Serranía de Chiribiquete. Este último, uma cadeia de montanhas das mais antigas do planeta que faz parte do Escudo Guianês, foi declarado  pela UNESCO como Patrimônio Misto da Humanidade em julho de 2018 por seu valor natural e arqueológico.

Angélica Rojas, coordenadora regional de Guaviare e Meta Sul da Fundação para a Conservação e o Desenvolvimento Sustentável (FCDS), acrescenta que a portaria “basicamente determina dois usos para este território: ou se vive da economia florestal ou se conserva a floresta”. Pelo menos é o que o documento aponta.

Rojas explica que dos 5,4 milhões de hectares de Guaviare, apenas 7% (400.000 hectares) podem estar sujeitos a legalização de propriedade. Ou seja, somente um colono pode legalizar sua propriedade. Esta área sujeita a legalização é a maior reserva camponesa do país: uma figura criada pela lei colombiana na década de 90 para promover a economia camponesa que, precisamente por esta razão, que está protegida da apropriação de terras, uma vez que somente terras do tamanho de uma Unidade Agrícola Familiar (FAU) são concedidas, que é o mínimo que uma família precisa para sobreviver com dignidade, em todos os casos menos de 200 hectares.

Mesmo assim, os títulos propriedade dos camponeses nesta área são poucos, enquanto o índice de acúmulo de terras por parte dos latifundiários é alto . Esta é outra razão pela qual a ocupação, o desmatamento, as vacas e a coca passaram destes limites para áreas ambientalmente protegidas de Guaviare.Um dos exemplos mais drásticos do não cumprimento dessas normas é o dos nukak, um povo indígena que permaneceu sem contato até 1988, e que o Tribunal Constitucional declarou “em risco de extermínio étnico e cultural” em uma famosa decisão de 2009. Os nukak sofreram deslocamento forçado de sua reserva legalmente constituída devido às dinâmicas de colonização, desmatamento e cultivos ilícitos. Muitos deles vivem hoje em condições precárias, na área urbana de San José.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
ALGUNS NUKAK DESLOCADOS VIVEM EM UM TERRENO PERTO DA CIDADE DE SAN JOSÉ DEL GUAVIARE E GERALMENTE PASSAM O DIA NO PARQUE DA CIDADE. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Em abril de 2018, a Corte Suprema de Justiça declarou a Amazônia colombiana – incluindo Guaviare- como sujeito de direitos e ordenou, mediante a sentença STC 4360 de 2018, a implementação de mecanismos para deter o desmatamento.

Em termos de justiça, isto significava que o Ministério Público devia estabelecer um grupo de oito promotores de justiça para investigar crimes como apropriação de terras, tráfico de madeira, mineração ilegal e tráfico de drogas nos sete departamentos que compõem esta região. Guaviare passou de registrar quatro processos em 2018 para 191 em 2019, por nove crimes relacionados ao meio ambiente, de acordo com a Procuradoria Geral da República. Do total, 70% (136) estão sob investigação e 24% (48) estão na fase judicial. A instituição reservou os nomes dos envolvidos porque nenhum processo tem sido concluído.

O Exército também assumiu novas tarefas. Em abril de 2019, lançou a Operação Artemis como uma ofensiva contra o desmatamento. Esse ano, só em Guaviare, foram capturadas 48 pessoas. Nenhum peixe grande entre eles. O próprio coronel Norberto Salgado, comandante da 22ª Brigada, disse em janeiro de 2020 que eram camponeses com motosserras que estavam ganhando a vida, “que estavam derrubando 3, 4,5, 10, 15, 20 hectares”. Ele insistiu que “a maioria dos hectares que estão derrubando estão sendo utilizados para novas plantações de coca”, embora as demais fontes consultadas para esta matéria apontem a pecuária extensiva como o principal fator de desmatamento.

Não há grandes desmatadores que tenham sido presos ou identificados. Neste cenário, os agricultores temem que a denúncia implique riscos e que as autoridades sejam permissivas.

Melhor ficar calado?

Jairo Sedano é o proprietário da reserva natural O Diamante das Águas e inspetor ambiental da Rede de Vigilância Cidadã Guaviare em Paz. Ele era um pecuarista “muito próspero, defensor da pecuária, na Serranía de La Lindosa”, lembra-se. Ele tinha 65 cabeças de gado, mas começou a ter em conta o discurso sobre conservação e o treinamento em questões ambientais. Há 14 anos ele decidiu tirar todo o gado e se dedicou a recuperar o que havia cortado. Hoje ele tem 31,5 hectares de reserva natural e conseguiu repovoar sua propriedade com árvores como patauá, açaí, abarco, macano, cachicamo e guayabeto. Sua propriedade também serve para o trabalho de campo de estudantes universitários.

Guaviare. Foto: Jeanneth Valdivieso
JAIRO SEDANO DECIDIU ABANDONAR A PECUÁRIA PARA CRIAR UMA RESERVA NATURAL, UMA DECISÃO QUE O ENCHE DE ORGULHO. FOTO: JEANNETH VALDIVIESO.

No início de 2020, Sedano ouviu “uma motosserra funcionando por oito dias” perto de sua propriedade e, semanas depois, gravou em vídeo derrubada em um pântano perto de San José del Guaviare por parte de construtores.

Ele sabe que falar tem seu preço. “Por defender a vida, você acaba sendo identificado e excluído da sociedade. A conservação em Guaviare é difícil”, diz este homem que chegou de Santander, no centro-norte da Colômbia, há 35 anos. Hoje ele é um forte defensor da conservação, apesar de acreditar que há poucos incentivos. Junto com outros membros da rede de vigilância, Sedano está sempre monitorando o impacto ambiental das obras públicas e privadas, e acompanha os planos e projetos no departamento.

“O que eles sempre dizem é: ‘Por que você mexe com o que não lhe interessa?’ Por causa disso, nós que estamos no território, começamos a ter medo, a sentir que estamos sendo menosprezados. Mas por quê? Porque as instituições não querem fazer o trabalho e são permissivas.

A vontade de conservar, que é a bandeira de Gaitán, Rodríguez e Sedano, não é a regra, mas a exceção entre os camponeses de Guaviare e os novos proprietários de terras. Convencê-los a mudar de opinião não é fácil, e até “há pessoas que não gostam da conservação” e preferem estender seus pastos sem fim, diz Rodríguez.

Além disso, está a inquietude de ir contra a maré: “’Maria está convencida de não cortar, de cuidar… de daqui a pouco vai nos delatar, ela está pensando nisso. Ela já está nessa história’. Já me falaram”, diz Gaitán. Seu parceiro, Rodríguez, admite sentir-se “assustado” por defender a floresta. “Não recebi nenhuma ameaça direta, mas houve alguns comentários. Há pessoas que nos acusam de falar em quem está desmatando quando isso é uma mentira. Eu não denunciei ninguém, são pessoas que falam sem ter nenhum embasamento, mas um comentário como esse pode nos prejudicar”, acrescenta ele.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
JORGE AVENDAÑO MORA EM CALAMAR. POR TER DENUNCIADO PROBLEMAS NA COMUNIDADE, COMO LÍDER E INSPETOR CIDADÃO, ELE JÁ RECEBEU INTIMIDAÇÕES E AMEAÇAS. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Em Calamar, Jorge Avendaño, líder social, inspetor cidadão e soldador por profissão, mora em Guaviare há 20 anos, mas somente a partir de 2016 começou a receber ameaças e intimidações. O último episódio veio na forma de um panfleto com o logotipo das Farc deixado em sua casa em julho de 2018, que dizia que ele era um “alvo militar” e tinha que “manter sua distância dos fatos que estão acontecendo”.

Como parte de suas tarefas como inspetor e líder, ele tem denunciado a falta de ação das autoridades locais diante dos problemas na região e a má administração dos recursos públicos. “Parece que há negócios entre as administrações (municipais) e as pessoas que estão invadindo”, diz Avendaño, que denunciou as ameaças no Ministério Público e depois recebeu um telefone celular, um botão de emergência e um colete à prova de balas.

Ele explica o silêncio que reina em Guaviare diante dos responsáveis pelo desmatamento, que – insiste – não são os pequenos camponeses: “Aqueles que têm essas grandes extensões de terra são poderosos. Quem vai denunciar uma dessas pessoas se souber que o que vai acontecer com ele é a morte? na Colômbia estamos acostumados a viver desse jeito:‘ se eu não disser nada, melhor, vivo mais‘. É por isso que nada acontece e aqueles que têm as armas não estão agindo (…) Como não há ninguém que tenha o controle, toda a gente começou  a desmatar”.

A centralidade da Coca

Em Guaviare, durante décadas, as Farc eram a lei e controlavam tudo, até o desmatamento. Com o desarmamento, após a assinatura do Acordo de Paz em novembro de 2016, ficou um vácuo que o Estado não conseguiu preencher e que foi aproveitado por aqueles que derrubam árvores. Além disso, os grupos dissidentes que se afastaram do acordo pegaram novamente em armas e continuam a se definir como “guerrilheiros”, impõem-se em extensas áreas distantes dos centros urbanos. No departamento, operam com a Frente Primeira sob o comando de ‘Iván Mordisco’ e a Frente Sétima, liderada por ‘Gentil Duarte’. Também estão presentes grupos criminosos (ou bacrim) formados por ex-membros de grupos paramilitares.

De acordo com um relatório de Crime Insight, os dissidentes das Farc “se beneficiam do desmatamento extorquindo dinheiro dos latifundiários”, com uma taxa cobrada por hectare de floresta derrubado e por cada cabeça de gado. Eles também continuam controlando o cultivo ilícito de coca e as rotas do narcotráfico na região.

A economia da coca cresceu em Guaviare na década de 90 sob a administração das Farc, e em 1997 havia atraído os paramilitares do Bloco Centauros das Forças Unidas de Autodefesa da Colômbia (AUC). Os dois lados se enfrentaram em um capítulo do conflito armado que ficou gravado na memória dos habitantes locais. Em 2006, os paramilitares se desmobilizaram e a violência se tornou menos geral, mas a coca permaneceu.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
A ECONOMIA DA COCA ATINGIU OS TEPUIS OU GRANDES FORMAÇÕES ROCHOSAS DA RESERVA NATURAL NACIONAL NUKAK. FOTO: FCDS

De acordo com dados do Sistema Integrado de Monitoramento de Culturas Ilícitas das Nações Unidas, em 2006 Guaviare registrou um pico de 9.477 hectares plantados com coca. Em 2018 o número desceu para 4.340. Uma das razões da redução foi a implementação do Programa Nacional de Substituição de Culturas Ilícitas (PNIS), que nasceu após o Acordo de Paz assinado em 2016, com o objetivo de incorporar os camponeses em uma economia legal com o compromisso de não voltar a plantar coca.

7.251 famílias foram incorporadas ao programa em Guaviare e erradicaram suas plantações de forma manual e voluntariamente, como fez Olmes Rodríguez, o líder de El Capricho que agora quer se dedicar à conservação.

“O povo estava convencido e arrancou seus arbustos. A maioria das pessoas que tinha arbustos os arrancou. Assinamos um acordo de substituição mediante o qual eles nos deram dois milhões de pesos (586 dólares para fevereiro de 2020) no primeiro pagamento, e tínhamos 60 dias para arrancar os arbustos”, conta. Depois vieram outros recursos para um projeto de segurança alimentar, que 62% (4.490) das famílias de Guaviare receberam até outubro do ano passado, de acordo com o último relatório de monitoramento das Nações Unidas. 

As demais famílias ainda não receberam o pagamento, e resta que os recursos para projetos produtivos sejam fornecidos. Estes atrasos provocaram reclamações de camponeses, que desenterraram 1.481 hectares de folha de coca dos 3.019 hectares identificados, de acordo com dados da ONU. Isto significa que, com esta economia ilegal, mais de 7.000 famílias se  sustentavam com um impacto ambiental de 1.481 hectares de floresta derrubada.

O não cumprimento fez com que os camponeses buscassem outras opções legais para seu sustento. “É por isso que a pecuária tem aumentado, porque as pessoas se afastaram da coca”, e não têm alternativas, explica Rodríguez. Ele também comenta que o cultivo de alimentos para vender não é lucrativo devido ao mau estado das estradas e às distâncias envolvidas. “As pessoas vivem do leite e do gado, da ordenha, é daí que obtêm o queijo que vendem”, explica.

Mateo Federico Cruz, vereador da Calamar, que antes de tomar posse era um inspetor ambiental, concorda: “Quase todas essas pessoas que têm desistido (da coca) para implementar modelos de pecuária, de engorda e de dupla finalidade (carne e leite)”.

A pecuária que devora a floresta

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
A PRADERIZACÃO PARA A CRIAÇÃO DE GADO ELIMINOU A FLORESTA TROPICAL CARACTERÍSTICA DE GUAVIARE, UM DEPARTAMENTO QUE TEM 450 MIL CABEÇAS DE GADO. FOTO: SARA CASTILLEJO.

“A pecuária é um dos principais motores do desmatamento, já que eles transformam a floresta em pastagem: derrubam as árvores, queimam a floresta e plantam pastagem para depois trazer as vacas”, explica Andrea Fernanda Calderón Caycedo, diretora da seção Guaviare da Corporação para o Desenvolvimento Sustentável do Norte e Leste da Amazônia (CDA), a autoridade ambiental da região. Eles estão fazendo isso inclusive em áreas protegidas.

Aldemar Galeano, chefe de assuntos técnicos e administrativos do Comitê de Pecuaristas de Guaviare, descreve a relação gado-coca nestes termos: “Depois da coca, a coisa mais lucrativa aqui é a pecuária”. E como é que muitos conseguiram começar na pecuária? Com o lucro que ficou da coca.

As pessoas optaram por comprar fazendas e gado, e o número começou a crescer. Hoje, a capacidade de carga das fazendas de gado em Guaviare é de uma vaca por hectare, ou até menos. Segundo os números recolhidos por Galeano, responsável pela vacinação do gado em todo o departamento, o número de cabeças de gado em Guaviare é de 450.000. Ou seja, 450.000 hectares de pastagens de gado no território amazônico, o que equivale a toda a área para legalização da propriedade disponível para os camponeses. Se todas as terras que as vacas pisam estivessem legalizadas, ninguém mais conseguiria viver no departamento.

Mas grande parte dessas terras não têm títulos e muitas dessas pastagens são novas. A diretora regional da CDA denuncia o fato de seu trabalho estar sendo interrompido devido a sua impopularidade entre vizinhos e grupos armados. “Nossa equipe técnica já teve inconvenientes devido a que não é bem recebida pela comunidade, ela já foi sabotada e, por outro lado, houve retenções por parte desses grupos fora da lei”, adverte ela.

O precedente mais grave foi registrado em março de 2015 quando Ricardo Molina, um funcionário da CDA, foi morto por pistoleiros quando saía da entidade. Ele controlava a mineração ilegal. Hoje, como nos Parques Nacionais, as autoridades ambientais são proibidas de entrar em áreas onde deveriam exercer controle, devido a ameaças de grupos armados. Desde a assinatura do Acordo de Paz, dois assassinatos de líderes sociais foram registrados em Guaviare (em junho e outubro de 2017), de acordo com informações da Ouvidoria do Povo e da organização Somos Defensores.

A diretora seccional da CDA lamenta também que o trabalho da Corporação não seja “bem visto” na comunidade porque “suas linhas econômicas” estão concentradas na pecuária extensiva, o que contraria o uso da terra em Guaviare.

“Conheço criadores de gado há mais de 15 anos que começaram com 10  cabeças de gado e agora têm 500”, diz Galeano, do Comitê Pecuário. “Aí surge a questão do desmatamento: o fazendeiro começou com 10 hectares de pastagem, mas no ano seguinte, como nasceram cinco filhotes, ele foi e derrubou outros cinco hectares. E foi aumentando até chegar aonde está.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
NAS PROXIMIDADES DA ÁREA URBANA DE SAN JOSÉ DEL GUAVIARE, O GADO OCUPA TERRITÓRIO ANTERIORMENTE HABITADO POR ESPÉCIES NATIVAS DA AMAZÔNIA COLOMBIANA. FOTO: SARA CASTILLEJO.

De acordo com esta lógica, o desmatamento para a pecuária seria local e obedeceria à economia de subsistência das pessoas de Guaviare, que é também sua alternativa mais viável para não voltar ao cultivo da coca. Para Angélica Rojas, entretanto, os constantes sobrevoos de monitoramento da cobertura vegetal que ela faz com a FCDS mostram que, embora seja verdade que os habitantes locais têm gado, eles não são o principal problema. “O foco deveria estar nos grandes desmatadores, que eles chamam de ‘Los Caqueteños’ ou ‘Los Gorgojos’, que são basicamente redes de apropriação e mau uso da terra”, diz ela.

Heydeer Palacio, governador de Guaviare desde janeiro de 2020, concorda que “são os forasteiros que fazem essas más intervenções”. Ele afirma que são as pessoas com dinheiro vindo de Bogotá, Arauca, Boyacá e Bucaramanga que estão comprando terreno fora da zona de reserva camponesa. Estas vendas seriam através de um mercado clandestino, porque oficialmente tudo que está fora da reserva camponesa é propriedade inalienável da nação.

Ninguém ousa nomear os responsáveis, mas nas conversas se fala das “sepulturas de árvores”, os depósitos de árvores caídas após a derrubada.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
IMAGEM DO DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA DE GUAVIARE ANTES DE A ÁREA SER TRANSFORMADA EM PASTAGENS PARA VACAS. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Para as instituições, a identificação dos culpados não é fácil. A diretora da autoridade ambiental procura um mapa do departamento para explicar e mostrar a área onde o desmatamento está concentrado. “Este é terreno baldio, da nação, que não tem dono, que não está sujeito à legalização da propriedade”. Diga-me, como autoridade da CDA, como posso saber quem é o dono disso, se o dono disso é o Estado?

O inconveniente ocorre quando os camponeses não veem sanções para os grandes desmatadores, mas as veem para derrubadas menores. “Se você tem dinheiro, a lei não existe, e se você não tem dinheiro, a lei existe (…) É com isso que a maioria das pessoas não concorda”, reclama Olmes Rodríguez. Os pequenos desmatadores são geralmente pegos em flagrante, mas para os outros é preciso um trabalho de inteligência que até agora não teve sucesso, explica Calderón Caycedo.

Rodríguez explica que primeiro é encontrado o camponês que está derrubando. Ele começa a se defender e aponta o outro que o contratou, que por sua vez aponta para outro, que finalmente diz: “‘Não, o responsável é um médico de Bogotá'”. Mas esta pessoa nunca aparece em Guaviare. “Se verificar o banco de dados, os instrumentos públicos, corroboro que são terrenos do Estado”, diz ela. Ou seja, não aparece nenhum proprietário do terreno, mas a posse é efetivada através do desmatamento.

Embora a CDA aplique penalidades financeiras a indivíduos, a diretora reconhece que o nível de cumprimento “é baixo”. O mesmo acontece com as instituições. Em 2019, ela impôs multas à governação e às prefeituras de três dos quatro municípios de Guaviare – Calamar, Miraflores e El Retorno – por ações contra o meio ambiente. A Procuradoria Geral também está investigando os casos de Pedro Pablo Novoa e Jhonivar Cumbelos, prefeitos dos dois primeiros municípios, que ocuparam cargos até o final de 2019, “como supostamente responsáveis pelos crimes de danos agravados aos recursos naturais e invasão de uma área de especial importância ecológica”. Oscar Ospina, prefeito de El Retorno, foi suspenso de seu posto e permanece em prisão domiciliar “por suposta responsabilidade em crimes ambientais e atos de corrupção”.

Angélica Rojas, a especialista em terras da FCDS, explica que entre os dias de desmatamento, plantio de pastagem e localização do gado, que é como funciona o ciclo de acumulacção de terra, “há um período de espera, que é para ver se alguém vem disputar, como a corporação (ambiental) a polícia, ou o exército, alguém venha para criar problemas por essa área que foi desmatada”, diz ela.

Ela explica que como ninguém diz nada, a ocupação é consolidada, e acrescenta que os novos ocupantes “não estão interessados no terreno, eles não querem ficar com o terreno. Eles sabem que em algum momento serão expulsos, o que eles querem é aproveitar, usar essa terra enquanto não forem expulsos, o que pode acontecer em um ano, 50 anos ou nunca”.

De colonos a reflorestadores

Agora estamos vivenciando a mais recente onda de colonização. A primeira começou em meados do século 20, liderada pelo Estado, que batizou os recém-chegados como “colonos”.

“Um colono é fundamentalmente um camponês deslocado”, aponta Alfredo Molano, escritor e pesquisador do conflito colombiano, em uma palestra sobre a coca. No sudeste da Colômbia, explica, era “uma verdadeira proeza derrubar um hectare com um machado naquela época”. Tratava-se de uma tarefa verdadeiramente titânica. E foi isso que os colonos fizeram: entraram, derrubaram a floresta e imediatamente a queimavam para plantar milho.

Os colonos receberam o status de “civilizadores” de terras ausentes, e suas fazendas foram valorizadas como os lugares onde a economia capitalista e o progresso se juntavam”, explicam os antropólogos Carlos Del Cairo e Iván Montenegro-Perini no artigo “Espaços, Camponeses e Subjetividades Ambientais em Guaviare”.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
A CHEGADA DOS PRIMEIROS COLONOS QUE ATRAVESSARAM A FLORESTA EM GUAVIARE REMONTA A MEADOS DO SÉCULO XX. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Ainda hoje, em San José  se pode observar certo heroísmo quando os vizinhos se apresentam como “colonos” que vieram de todos os cantos da Colômbia. De fato, todos os anos, em agosto, é realizado o Festival das Colônias, promovido pelo governo.

Essa geração não tinha relação profunda com Guaviare, e estava condicionada pela indústria extrativista. Antes, era a borracha, a madeira, as peles e, mais recentemente, a maconha, a coca e o gado, explica Angélica Rojas.

“O tempo todo se ouvia: ‘O que eu posso ganhar para poder ir embora?’ Não ‘o que eu posso deixar para o solo?’ Nem ‘como posso me relacionar melhor com isto?’.

Mas uma nova geração de habitantes mais enraizados a Guaviare, e inclusive aqueles nascidos nesta região amazônica, parecem desafiar a tradição. Embora as tensões persistam, e o gado e a coca continuem, desde a fazenda El Sinaí, de Gaitán e Rodríguez, ou de El Diamante de las Aguas, de Jairo Sedano,  são feitos pequenos ou grandes gestos de conservação que também expressam sua intenção de permanecer no território.

Guaviare. Foto: Sara Castillejo Ditta.
MARIA GAITÁN, NASCIDA EM GUAVIARE E PERTENCENTE À GERAÇÃO DOS FILHOS DOS PRIMEIROS COLONOS, ESTÁ DISPOSTA A MUDAR SUA RELAÇÃO COM A FLORESTA PARA FICAR. FOTO: SARA CASTILLEJO.

Antes, acrescenta Maria, “éramos cruéis com a floresta (…) Agiamos contra a floresta sem compaixão. Hoje dói, dói derrubar uma árvore” e ela se lembra de seus filhos. “Essa mentalidade que eu tinha, eles não a têm”. A menina, o menino (…) eles comem uma semente e plantam uma árvore ou dizem: “Mamãe, leve uma para a fazenda e plante”.

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