A líder de Sarayaku, uma aldeia kichwa no Equador, luta há mais de vinte anos contra as companhias petrolíferas que querem entrar em seu território. Por sua luta, ela foi processada, caluniada e ameaçada de morte, mas não conseguiram dobrá-la. Quem tem medo da Patricia Gualinga?
Patricia Gualinga está sentada em uma cafeteria barulhenta em uma rua central de El Puyo, um enclave de concreto no meio da Amazônia equatoriana. É uma sexta-feira, em fevereiro de 2019, depois das dez da manhã. El Puyo – um ninho de comerciantes, trabalhadores das companhias de petróleo, funcionários internacionais e ativistas ambientais – tem estado em alvoroço desde o início do dia. Um breve aguaceiro amazônico limpou o ar e esfriou o asfalto.
Em meio ao rugido dos canos de escape adulterados das motocicletas, dos alto-falantes que começam a retumbar nas calçadas, dos liquidificadores que trituram naranjilla (fruta tropical) e das frigideiras onde o óleo ferve, Gualinga abre seus olhos negros profundos e arruma sua cabeleira negra como uma cachoeira sem fim, e lembra que a única vez que ela tinha falado publicamente sobre a causa indígena do Equador foi em 1992.
“que eles nos devolvam nossos territórios”
Patricia Gualinga.
Aos 18 anos de idade, quando tinha acabado de concluir o ensino médio, Gualinga andou 500 quilômetros junto com 1200 indígenas de 148 comunidades que compõem a Organização dos Povos Indígenas da Província de Pastaza (OPIP). Partiram da floresta para Quito, a capital, onde esperavam se encontrar com o governo. No meio da marcha, uma repórter se aproximou do grupo de jovens que estava com Gualinga e perguntou o que eles estavam demandando. “Algo muito simples”, respondeu ela, “que eles nos devolvam nossos territórios”. A clareza e eloquência de Patricia Gualinga eram evidentes, embora levasse alguns anos para que se mostrassem plenamente.
A marcha da OPIP de 1992 mudou a história da relação dos povos indígenas do Equador com o Estado. Chegaram a uma capital desconcertada no dia 23 de abril, onde um grupo de ativistas lhes entregou rosas e alimentos. A primeira coisa que os indígenas fizeram quando chegaram à capital foi prestar homenagem a Jumandi, um líder amazônico que foi desmembrado pelos espanhóis no século xvi. Às 11 da manhã eles foram recebidos pelo presidente da República na época, Rodrigo Borja, que dois anos antes tinha rejeitado as exigências apresentadas pela OPIP. “Eles estão tentando criar um estado paralelo onde as leis e autoridades equatorianas não governem”, disse Borja.
Mas a organização indígena, liderada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), da qual a OPIP era membro, tinha levado o governo à mesa. Foi a primeira vez que uma delegação de indígenas amazônicos atravessou a colunata do Palácio Carondelet, sede da presidência, em visita oficial. “Esta é a sua casa”, disse-lhes Borja.
Um dos líderes da marcha, Valerio Grefa, começou seu discurso perante o presidente, ministros e generais das Forças Armadas, dizendo que eles estavam lá “representando todas as vidas da floresta”. Os olhos inquietos de Patricia Gualinga se moviam de um lado para o outro enquanto ela processava o que via e ouvia, sentada nas cadeiras montadas como um público na sala amarela onde foram recebidos.
Uma de suas tias falou ao presidente Borja em nome do povo Sarayaku – que em sua língua significa rio de milho – em espanhol imperfeito, mas com uma mensagem muito clara: “Este é o rosto do povo indígena amazônico”, disse-lhe ela. Patricia Gualinga se lembra da emoção daqueles dias – “participei com muita paixão” – mas aos 18 anos ela não sabia – como poderia saber – que seu destino seria se tornar o rosto mais visível da resistência de seu povo durante as duas décadas seguintes. Seu irmão Eriberto, um cineasta que viaja pelo mundo mostrando seus filmes sobre a resistência Sarayaku, diz que sua irmã “levava seu próprio estilo de vida, sem renunciar ou esquecer que ela era de Sarayaku, onde quer que estivesse”. O tempo a colocaria bem no centro da causa de seu povo. Só era necessário esperar um pouco.
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A terceira resolução dos acordos de 1992 foi que o Estado continuaria administrando os recursos sob as terras ancestrais
Toda história de resistência é uma história aberta. A primeira parte, a de 1992, terminou com a adjudicação formal de mais de um milhão de hectares a mais de 100 comunidades indígenas. Durante os mais de 20 dias de negociações, Patricia Gualinga e centenas de outros indígenas acamparam no histórico parque El Ejido, em Quito. No final, foi decidido que o exército controlaria uma “zona de segurança” de 40 km na fronteira com o Peru (com o qual o Equador estava então envolvido em uma guerra intermitente) e que o Parque Nacional Yasuní seria expandido em 270.000 hectares. A terceira resolução dos acordos de 1992 foi que o Estado continuaria administrando os recursos sob as terras ancestrais. Essa última determinação perpetua o conflito em curso entre as corporações, o Estado e os povos indígenas.
Rafael Correa, contra sua palavra, acabou autorizando e promovendo a exploração, enquanto acusava ambientalistas e líderes como Gualinga de serem inimigos do Estado
O Parque Nacional Yasuní voltou às manchetes 20 anos depois, quando um entusiasta Rafael Correa, o novo presidente do Equador, prometeu em 2007 não o perfurar para extrair petróleo. Seis anos depois, Rafael Correa, transformado em um caudilho autoritário, contra sua palavra, acabou autorizando e promovendo a exploração, enquanto acusava ambientalistas e líderes como Gualinga de serem inimigos do Estado. Mas, em 1992, a história parecia fechada, e Patricia, a mais calma de seus irmãos, tomou caminhos que a afastaram do ativismo.
No início do século XXI, ela estava aprendendo algo que se revelaria extremamente útil no futuro: tinha uma posição importante no Ministério do Turismo do Equador. “Eu era a diretora regional de turismo”, diz ela, sorrindo, enquanto olha pela varanda de bambu onde está falando.
Gualinga tinha chegado ao cargo com o mesmo impulso que, anos depois, tornou-a líder do povo Sarayaku. Sua família tinha decidido abrir um pequeno operador turístico, já que a lei na época não permitia que as comunidades administrassem diretamente as visitas a suas comunidades. “Ocorreu-me convidar a ministra do turismo para que soubesse que nós não tínhamos o direito de administrar nosso próprio turismo, apenas as empresas.” Gualinga escreveu “uma das muitas cartas que você envia e os ministros não respondem”. No entanto, a ministra Rocío Vásquez, respondeu prometendo ir a Sarayaku.
Receber um ministro de estado foi algo que nunca tinha acontecido na comunidade.
Receber um ministro de estado foi algo que nunca tinha acontecido na comunidade. Gualinga, que tinha pouco mais de vinte anos, percebeu que mobilizar uma pessoa tão importante exigiria uma logística cara e especializada. “Eu não tinha ideia de como poderia transportar a ministra para Sarayaku”, diz ela, como surpresa consigo mesma. Assim, Gualinga decidiu que só havia uma maneira de deslocar um ministro de estado através da floresta: de helicóptero. Ela só tinha que encontrar alguém para lhe emprestar um.
Ele viajou para Coca, a cidade onde está localizada a sede da quarta divisão do exército equatoriano, encarregada do patrulhamento de toda a Amazônia, para tentar falar com o general ao comando. Durante uma semana ela ia todos os dias bater à porta para perguntar por um general cujo nome não lembra mais. Eles lhe deram diferentes respostas, a fim de evitar a visita: disseram que ele estava em Gualaquiza, no sul, que seus superiores o tinham enviado para Quito, que tinha retornado, mas que tinha partido imediatamente para Macas, perto da fronteira com o Peru. “Diga-lhe que a senhorita Patricia Gualinga está perguntando por ele”, repetia aos cadetes que a recebiam, um pouco desconcertados por suas calças de xadrez e camisetas amarradas no umbigo. “Escreva a mensagem, por favor”, ela dizia e ia embora, mas retornava no dia seguinte para repetir o mesmo exercício. Até que ele acabou quebrando a vontade militar. “Talvez ele só me recebesse por curiosidade de saber quem era essa menina que ia procurá-lo todos os dias”, disse Gualinga, com meio sorriso, como se lembrasse das dimensões de sua audácia.
Três meses depois, ela chamou a jovem Sarayaku para oferecer-lhe dirigir todo o Ministério do Meio Ambiente na Amazônia equatoriana.
Quando ela falou com o general, não só pediu um helicóptero, mas disse-lhe para usar o maior que eles tinham: um Mil MI-171 de fabricação russa. “Não sei que anjo me acompanhou naquele dia, ou em que tipo de humor o general deve ter estado, mas ele me disse que sim e que iria também”. Algumas semanas depois, a ministra Rocío Vásquez, que não podia comer a carne que lhe era oferecida por ser vegetariana, visitou Sarayaku, junto com os militares e conselheiros. Quando o helicóptero pousou, levantando um pó amarelo e ancestral, a primeira coisa que Vásquez pediu foi para falar com a dona Gualinga, que tinha organizado a viagem. Quando apontaram a jovem de calças xadrez e blusa curta, ela fez uma cara como a dos militares cuja porta Patricia Gualinga bateu, mas não disse uma palavra. Ela comeu o que pôde, dançou, bebeu chicha e foi embora. Três meses depois, ela chamou a jovem Sarayaku para oferecer-lhe dirigir todo o Ministério do Meio Ambiente na Amazônia equatoriana.
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Patricia Gualinga disse não. “Eu estava com medo”, diz ela. Depois vieram os tempos tumultuados da crise bancária e a queda do presidente Jamil Mahuad. O Equador era um país quebrado que oito em cada 100 habitantes (mais de um milhão) tinham abandonado, por todos os meios possíveis, legais e ilegais, arriscando suas vidas para buscar uma vida melhor em países como a Espanha, a Itália e os Estados Unidos.
O Equador só podia oferecer, a quem quisesse pagar, a matéria-prima que produzia sem muito esforço. Entre elas, a mais importante de todas: o petróleo.
A indústria bancária estava destruída. 70% de todos os bancos do país foram à falência, sem um aparelho produtivo em funcionamento e em meio ao processo de dolarização (antes de se exilar permanentemente em Boston, Mahuad tinha ordenado a morte da moeda nacional, o sucre, que seria substituído pelo dólar americano, à taxa de um para cada 25 mil sucres desvalorizados). O Equador só podia oferecer, a quem quisesse pagar, a matéria-prima que produzia sem muito esforço. Entre elas, a mais importante de todas: o petróleo.
Mahuad foi sucedido por seu vice-presidente, um loquaz advogado chamado Gustavo Noboa, que navegou a crise com uma atitude de boa índole. Durante seu governo, Rocio Vásquez, a ministra vegetariana que tinha convocado a jovem de calças xadrez para o serviço público, retornou ao Ministério do Turismo, e chamou de volta a jovem Sarayaku, e fez-lhe a mesma proposta.
Patricia consultou com sua família. Seus irmãos lhe disseram que seria uma responsabilidade muito grande. “Eu estava assustada: como eu iria falar em público”, diz ela. “Eu realmente não sabia como era nem como funcionava a estrutura do Estado”. Ela hesitou. Mas seu pai, um dos xamãs mais respeitados da comunidade, disse-lhe para aceitar a posição, que ele tinha visto que iria muito bem.
“O Estado e as empresas petrolíferas nos chamam de terroristas desde a década de 1970, quando eu era menino”, diz Eriberto Gualinga, “mas tudo se intensificou em 2002”
Eriberto Gualinga.
E tudo correu bem até que começou a dar errado. No início, a ministra Vásquez deu a Gualinga autoridade e recursos. O escritório do Ministério do Turismo em Puyo não era mais um escritório obscuro, relegado a um prédio com pouco pessoal. Mas ao mesmo tempo, Noboa, o chefe de Vásquez, autorizou o cumprimento da concessão do território Sarayaku à empresa petrolífera argentina Compañía General de Combustible (CGC). “O Estado e as empresas petrolíferas nos chamam de terroristas desde a década de 1970, quando eu era menino”, diz Eriberto Gualinga, “mas tudo se intensificou em 2002”. A concessão tinha sido dada seis anos antes, durante os quais a empresa petrolífera quis entrar várias vezes no território sarayaku, que representava 65% dos 200.000 hectares que a CGC tinha permissão – estatal, mas não ancestral – para explorar e aproveitar. O contrato não tinha sido consultado com o povo sarayaku, mas em 2002, o Estado, necessitado, ofereceu todas as garantias para que a corporação argentina reiniciasse seus trabalhos de exploração em um território alheio.
Era uma época de divisão para Sarayaku: alguns líderes cederam ao cantos de sereia corporativos e a resistência começou a diminuir. Outros, no entanto, continuaram com sua posição firme. Eles decidiram que poderiam encontrar em Patricia uma aliada para a causa do povo Sarayaku. “Ela era uma pessoa conhecida. Ela tinha trabalhado na rádio, estudado na Universidade Andina e estado no ministério. Ela tinha muita credibilidade”, diz Eriberto Gualinga. Três líderes históricos do povo Sarayaku, Marlon Santi, José Gualinga e Heriberto Viteri, falaram com a diretora provincial do Ministério do Turismo para pedir-lhe que abandonasse as forças do Estado e retornasse à sua aldeia para encontrar seu destino. “Foi uma decisão difícil”, lembra ela.
“Se há uma coisa que você sempre tem, e que sempre terá, é o seu povo. Então, decidi ir com meu povo, o povo Sarayaku”.
Patricia Gualinga.
Ela tinha feito carreira, era a mão direita da ministra na região, e tinha ganhado autoridade e experiência. Ao mesmo tempo, os cargos no governo são filhos efêmeros da volatilidade da política. “Mas havia algo certo”, diz Gualinga, na cafeteria onde está falando, em Puyo, olhando pela varanda de bambu e samambaias que penduram e caem sobre um cartaz mostrando um grupo de mulheres amazônicas em resistência, onde ela aparece no centro. “Se há uma coisa que você sempre tem, e que sempre terá, é o seu povo. Então, decidi ir com meu povo, o povo Sarayaku”.
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“Tudo ficou parado: a educação, a saúde, o trabalho na terra. Só nos concentramos na defesa”
Eriberto Gualinga.
Quando o estado e a companhia petrolífera atacaram, o povo Sarayaku ficou paralisado. “Tudo ficou parado: a educação, a saúde, o trabalho na terra. Só nos concentramos na defesa”, lembra Eriberto Gualinga. A comunidade se organizou em acampamentos de paz ao longo das trilhas que unem os 135.000 hectares da terra Sarayaku. “Não havia tempo nem energia para mais nada”. Mesmo que você seja da floresta, a floresta consome a gente: defendê-la de dentro gasta toda a sua energia”, diz o documentarista. Foi um momento revelador para os membros mais jovens de Sarayaku: “nós nos conectamos com os líderes históricos”, diz Eriberto, “nós os vimos, os conhecemos, saímos com eles para as praias e para a floresta, aprendemos com eles”. Pessoas como seu pai Sabino, sua mãe Corina Montalvo, seus tios, a família Viteri, e outros líderes assumiram o lendário papel de guardiões do território.
“A pergunta que me fiz foi: a quem acudimos, se o sistema de justiça no Equador não respondia?”
Patricia Gualinga.
Foi nessa época de crise que Patricia iniciou seu trabalho de defesa de Sarayaku. Sem ser formalmente uma líder, ela comandou a comunicação e as relações com o mundo mestiço, incluindo o Estado e a empresa petrolífera. “A pergunta que me fiz foi: a quem acudimos, se o sistema de justiça no Equador não respondia?” Seu objetivo foi lograr que a mídia nacional e as estações de rádio em Quito se interessassem pelo que estava acontecendo na Amazônia. “A Patricia é uma ponte que conecta um mundo com vários outros mundos”, diz Viviana Krsticevic, diretora do Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) com sede em Washington. Essa conexão trouxe a simpatia e a empatia de pessoas de todo o mundo para a causa comum dos sarayaku.
“As coisas têm que acontecer por uma razão”, reflete Gualinga, vinte anos depois. “No Ministério, eu tinha um emprego que eu gostava, mas o melhor foi que mais tarde isso me ajudou na luta sarayaku”. Gualinga despertou o interesse da mídia, o que, por sua vez, despertou o interesse internacional no que estava acontecendo. Seu tempo no governo, na academia e na mídia lhe ensinou lições não só de comunicação, mas também de administração. “Aprendi algo que no mundo indígena não está muito internalizado: os papéis”. No mundo indígena, eminentemente oral, o valor da palavra é supremo. “No mundo mestiço, as palavras não são suficientes”, diz ela.
O povo sarayaku estava enfrentando um Estado prepotente em uma sociedade (equatoriana) que ainda carecia de uma forte consciência ambiental e que, por outro lado, mantinha um marcado desprezo – e ignorância – pela vida dos povos ancestrais.
O povo sarayaku estava enfrentando um Estado prepotente em uma sociedade (equatoriana) que ainda carecia de uma forte consciência ambiental e que, por outro lado, mantinha um marcado desprezo – e ignorância – pela vida dos povos ancestrais. A luta não ia ser fácil.
Mas como em qualquer conflito, levando em conta os custos e os sacrifícios, houve uma tentativa de resolver a disputa com o diálogo. O gerente da empresa petrolífera CGC convocou os representantes do povo sarayaku para uma reunião. Ele os convocou para um hotel muito elegante em Quito. Os sarayaku levavam em Quito mais de três semanas, tentando parar as máquinas da indústria extrativa. “Nós não tínhamos dinheiro suficiente para comer, queríamos voltar a Puyo, mas ainda havia reuniões pendentes, por isso não podíamos voltar”.
Cansados e famintos, eles assistiram à reunião com a empresa petrolífera, que estava disposta a vencer por sedução. “Muito amáveis, como costumam ser, nos ofereceram muita comida e bebida”, lembra Patricia Gualinga, que na época não tinha 30 anos de idade. “Eu sabia no fundo que aquilo era uma armadilha, por isso só aceitei um copo de água”. O gesto fez com que seus companheiros também resistissem à gigantesca tentação da empresa. Em um ponto da reunião, lembra Gualinga, ela tomou a palavra e falou francamente: “Vocês não vão entrar em nosso território”, disse ele aos argentinos. “Foi quando eles mostraram seu verdadeiro rosto. O gerente, cujo sobrenome era Soldati, gritou: ‘Você é uma criança caprichosa, o governo nos deu os blocos e pode militarizá-los, e vai fazê-lo'”. Não houve armistício. A guerra – uma guerra desigual – foi declarada.
A disputa se intensificou em 2003. O governo de Gustavo Noboa tinha acabado. Lucio Gutiérrez, o ex-policial militar que tinha organizado o golpe de Estado que derrubou Jamil Mahuad, ganhou eleições presidenciais. Com ele veio um gabinete de ministros determinado a explorar o petróleo. O aparelho estatal foi posto em marcha para cumprir as promessas feitas à CGC, bem como a muitas outras empresas petrolíferas, mineradoras e madeireiras. Enquanto isso, Patricia Gualinga organizava entrevistas na mídia para os líderes, organizava as mulheres, conseguia aliados internacionais e fundos para financiar a resistência.
Patricia Gualinga procurou ajuda jurídica de qualquer pessoa disposta a dar. Foi assim que conheceu Mario Melo, um dos advogados que defenderia sarayaku contra a investida do Estado e da indústria de petróleo. “Junto com outra líder, Cristina Gualinga, elas pediram apoio legal diante da invasão que sofriam”, lembra Melo.
Ao mesmo tempo, na floresta, o assédio se intensificou. Em janeiro de 2003, em Jatún Molino, uma comunidade adjacente ao território Sarayaku, foi relatada uma agressão contra um grupo sarayaku que viajava em canoas no rio Bobonaza: eles foram alvejados com tiros desde a margem do rio.
soldados do exército e pessoal de segurança da CGC prenderam os líderes Elvis Fernando Gualinga, Marcelo Gualinga, Reinaldo Gualinga e Fabián Grefa, e, de acordo com o que eles denunciaram, os torturaram
Mais tarde, conforme denúncia do povo Sarayaku perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), impediram-lhes a passagem pelo rio, sua principal rota de comunicação. No final daquele mês, soldados do exército e pessoal de segurança da CGC prenderam os líderes Elvis Fernando Gualinga, Marcelo Gualinga, Reinaldo Gualinga e Fabián Grefa, e, de acordo com o que eles denunciaram, os torturaram: foram amarrados de mãos e pés, vendados e jogados no chão, onde ficaram por uma hora. Grefa foi obrigado a ajoelhar-se ao lado de um rifle e tiraram fotos dele “aparentemente com o objetivo de acusá-lo de portar armas”, de acordo com um documento da Corte Interamericana.
Eles foram transportados pelos soldados em um helicóptero da companhia petrolífera para uma base da CGC e entregues aos membros da força de segurança da companhia petrolífera, que também supostamente os torturaram. Alguns dias depois, um dos acampamentos de paz do povo sarayaku foi supostamente atacado com armas de fogo. No momento do ataque, havia 60 indígenas. Dias depois, duas meninas de 12 anos teriam sido sequestradas por uma patrulha do exército acompanhada pelo pessoal de segurança da CGC. De acordo com documentos da Corte Interamericana, “antes de serem libertadas, as meninas foram submetidas a agressões indecentes”.
Em maio, a Comissão concedeu medidas cautelares ao povo sarayaku, mas o assédio não parou. Pelo contrário, o Estado disse, segundo uma resposta enviada à Comissão, que “os moradores de Sarayaku tinham ameaçado as comunidades vizinhas e que a quarta divisão do exército da Amazônia tinha iniciado uma operação de segurança para evitar ‘atividades criminosas’ por parte dos indígenas”. Além disso, disse que medidas cautelares estavam sendo usadas para evitar que certas pessoas fossem levadas ao sistema de justiça comum e que muitas das alegações feitas pelo povo sarayaku eram exageradas ou falsas. Gualinga lembra que o General Oswaldo Romero, chefe do Comando Conjunto das Forças Armadas do Equador (a mais alta autoridade militar do país), viajou de helicóptero para dizer-lhes que era melhor se renderem. “Caso contrário, eles iriam militarizar a aldeia”. Os soldados e oficiais militares que chegaram com ele pertenciam à quarta divisão do exército, aquela que, há não muito tempo, tinha emprestado a Patricia Gualinga um helicóptero para transportar uma ministra entusiasta. As câmeras do Eriberto registraram a incursão.
O confronto se intensificou até que em 2005, durante uma marcha do povo sarayaku, eles foram atacados na estrada a caminho de Puyo. “Eles estavam vestidos de trabalhadores do setor de petróleo”, lembra Patricia, “a companhia petrolífera lhes deu todos os suprimentos para o ataque”. Era uma sexta-feira, e não havia autoridade para assumir a responsabilidade pelo que estava acontecendo. “Fizemos 10 voos com pessoas feridas”, diz Gualinga. “Havia pessoas desaparecidas, eles disseram que meu irmão mais novo tinha caído no rio”. Naquela noite, ela não dormiu.
O Estado não poderia continuar com suas ações contra o povo sarayaku – nem permitir que a companhia petrolífera entrasse no seu território- sob o risco de ter que pagar milhões em compensação ou de gerar ainda mais provas no caso levado perante a Corte
Como os outros líderes sarayaku, ela estava angustiada. Mas em um momento de clareza, Patricia escreveu aos advogados que os representavam perante a Comissão Interamericana em Washington. “Enviei um SOS urgente ao pessoal do Centro pela Justiça e o Direito Internacional. No dia seguinte, a Corte interveio: nesse mesmo dia, a Comissão enviou um pedido de medidas de proteção para o povo sarayaku“, lembra ela. O Estado não poderia continuar com suas ações contra o povo sarayaku – nem permitir que a companhia petrolífera entrasse no seu território- sob o risco de ter que pagar milhões em compensação ou de gerar ainda mais provas no caso levado perante a Corte. Durante sete anos, até que o caso foi julgado em 2012, as medidas protegeram Sarayaku.
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Em 2010, Patricia Gualinga trabalhava em Lima como assessora da Comunidade Andina de Nações (CAN), quando recebeu uma chamada de um dos líderes do povo sarayaku, Franco Viteri. “Ele me disse que precisavam de uma mulher forte para ser líder”, disse ela. Nas aldeias indígenas do Equador, cada comunidade tem uma mulher líder. “Mas em nossa aldeia ela não tinha muita força”. Gualinga assumiu o cargo apenas em 2011. “Foi só então que percebi que nunca tinha sido formalmente parte da liderança, que tinha passado meu tempo fazendo coisas sem ter nenhuma posição formal”. Tinham passado 10 anos desde que ela deixou os escritórios do ministério para se dedicar à defesa de seu povo.
O processo perante a Corte Interamericana tinha avançado, e estava nas etapas anteriores à sua resolução. Em 2012, Gualinga participou da audiência final. Muito tinha mudado desde a vitória de 2005. Em 2007, um jovem economista chamado Rafael Correa, cuja única experiência política tinha sido dirigir o Ministério da Economia do Equador durante seis meses, obteve uma vitória esmagadora nas eleições presidenciais com a promessa de “refundar o país”. Ele venceu com uma plataforma de organizações de esquerda, com o apoio de ambientalistas e de povos indígenas. Correa tinha prometido não explorar o petróleo no Parque Yasuní, e incluiu na nova Constituição do Equador, aprovada em 2008, um conjunto inovador de direitos para a natureza.
Mas muito em breve, seu governo voltou-se para o extrativismo. Começou a perder seus aliados ambientalistas e indígenas. Ele brigou com seu mentor, o economista e ativista da natureza Alberto Acosta, foi intolerante com a imprensa e severo com seus detratores. Construiu grandes estradas e megaprojetos de energia. Seus inimigos o acusavam de permitir a corrupção e de ser contrário à fiscalização enquanto seus seguidores conseguiam justificar tudo.
Correa reprimiu o protesto social, especialmente aquele ligado à oposição à extração de petróleo e minérios
Correa reprimiu o protesto social, especialmente aquele ligado à oposição à extração de petróleo e minérios. Ele chamou de “infantis” os ambientalistas que, como Acosta, se opunham à extração. A criminalização da defesa dos territórios indígenas se intensificou. José Serrano, que foi um dos advogados do povo Sarayaku em seus casos perante a Comissão e a Corte Interamericana, entrou para o governo de Correa. “Ele era uma pessoa pela qual tínhamos muito carinho e apreço”, lembra Gualinga, “por isso nos machucou tanto quando vimos como ele mudou e começou a nos perseguir”.
Serrano se tornou o todo-poderoso ministro do Interior do governo de Correa, no comando da polícia que reprimiu e prendeu pessoas que, antes, ele tinha defendido.
O povo Sarayaku enfrentou esse Estado na audiência de 2012. Os advogados dos sarayaku deram a Patricia Gualinga três funções. “Eu seria a testemunha principal, faria o pedido final à Corte, e seria a tradutora da outras testemunhas”. Mais uma vez, o tamanho da tarefa parecia assustador. “Era muita responsabilidade nas minhas costas”. Gualinga não só teve que preparar as testemunhas e preparar seu testemunho perante a Corte: ela também teve que arrecadar os fundos para que uma delegação de mais de 50 mulheres sarayaku comparecesse à audiência na sede da Corte em San José, Costa Rica. “Em algum momento, eu me sentia doente, mas no final fiz um grande trabalho na Corte Interamericana”. O advogado Melo diz que “Patricia sempre foi um pilar na defesa”.
lutas como a de Sarayaku nunca feitas por uma pessoa, mas por comunidades inteiras
Viviana Krsticevic.
O Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL), sediado em Washington, também fez parte da defesa jurídica de Sarayaku. Viviana Krsticevic, sua diretora executiva, diz que lutas como a de Sarayaku nunca feitas por uma pessoa, mas por comunidades inteiras. “Nessas lutas coletivas, a capacidade de fortalecer os movimentos de líderes como Patricia Gualinga tem sido essencial”.
Após anos de resistência, em junho de 2012, a Corte condenou o Estado equatoriano. O rosto de Patricia Gualinga, a torre da dignidade sarayaku, foi retratado na mídia de todo o mundo.
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A grande vitória da condenação na Corte Interamericana foi substituída pela perseguição que o Estado do Equador empreendeu contra um grupo de mulheres amazônicas que se autoconvocaram em 2013 para se opuser à décima primeira rodada de petróleo – um processo de licitação para campos de petróleo inexplorados, no qual empresas de países tão diferentes quanto o Chile e a Bielorrússia estavam interessadas.
A primeira marcha foi organizada por Gualinga. Eram somente mulheres sarayaku caminhando para Quito. Durante 15 dias, Patricia falou em todas as estações de rádio e televisão que lhe deram espaço. “No final da última entrevista, na Rádio Cristal, minha voz foi se perdendo até que fiquei uma semana sem falar”.
a terra não é negociada, apenas defendida
Várias mulheres de outras nacionalidades – shiwiar, sapara, waorani, shuar e achuar – se juntaram ao movimento. Assim nasceu o movimento Mulheres Amazônicas, que reúne mulheres indígenas que seguem um único preceito: a terra não é negociada, apenas defendida. Naquele ano, elas entregaram um manifesto a Rafael Correa, já na fase final de sua metamorfose para o extrativismo. “Ele nos disse para ir a Panacocha para ver a cidade do milênio. O coitado falava besteira. Disse que mudaríamos de ideia quando víssemos aquela cidade. Obviamente, ele não nos conhecia”.
Correa tinha conseguido minar a credibilidade da liderança indígena, que era basicamente composta por homens. O surgimento das Mulheres Amazônicas lhe deu um novo oponente, feminino, que o questionou com um tom menos viril e com o qual Correa não estava acostumado. “Nós pagaríamos caro por isso”, diz Gualinga.
Em novembro, as mulheres amazônicas se reuniram para ficar ao pé do Ministério de Hidrocarbonetos, onde as negociações estavam acontecendo. “Houve um incidente: o bielorrusso saiu e o povo o perseguiu, acusando-o de prejudicar nosso território. Correa usou isso para apresentar uma queixa contra várias pessoas – incluindo eu, Margoth Escobar, Nema Grefa, e outras mulheres e líderes”. A acusação era terrorismo e sabotagem. Em maio de 2017, Correa deixou o poder nas mãos de seu apoiador, Lenín Moreno, com o qual logo rompeu relações em meio a acusações de traição e sedição. As mulheres amazônicas, no entanto, permaneceram.
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Nesse mesmo ano, Patricia também deixou sua posição. “Pensei que finalmente eu ia ter uma vida de tranquilidade”, disse ela. A ela foi oferecida a presidência do povo sarayaku e, mais uma vez em sua vida, disse não. “Eu não podia: meu pai tem 95 anos e minha mãe 85, eu tinha passado muito tempo na luta, meu marido também tinha no balanço dos meus processos”. Quase trinta anos depois, a jovem funcionária entusiasta tinha se tornado um símbolo de resistência: “Eu a admiro por sua luta incansável não apenas em favor de seu povo, mas de todos os povos”, diz Margoth Escobar, outra das mulheres amazônicas perseguidas por sua oposição à extração de recursos na Amazônia equatoriana. Mario Melo, o advogado Sarayaku, acredita que Gualinga é o rosto de uma luta maior: “Ela é uma mulher honesta, tremendamente comprometida”, diz Melo, “que se tornou uma líder entre os povos indígenas do mundo”.
Mas três décadas após a luta, Patricia Gualinga achou justo dedicar-se a sua família. Os altos e baixos da política partidária a tinham levado a concorrer duas vezes a um cargo eletivo. Perdeu duas vezes. “Não sou boa para demagogia, nem para abraçar ou sorrir para todos, nem para dizer as coisas pela metade”. Seu irmão Eriberto, com um sorriso lateral, confirma: “Minha irmã é uma mulher temperamental, mas não de uma maneira ruim”. Disposta a fazer uma pausa da azáfama, ela decidiu se aposentar da vida pública.
“E eu vivi alguns meses de tranquilidade até que um dia de janeiro de 2018, à uma da manhã, quebraram as janelas da minha casa com pedras, gritando que da próxima vez me matariam”, diz ele.
Não importa quem estiver no governo, as empresas petrolíferas estão sempre no poder.
Gualinga estava surpreendida. “Eu achei que devia esperar estas coisas durante minha liderança, não depois”, diz ela. Mas então percebeu que o lançamento de novas rodadas de petróleo e a abertura de novos blocos estava chegando. Não importa quem estiver no governo, as empresas petrolíferas estão sempre no poder.
Até hoje, não se sabe quem o fez. A única coisa que Patricia Gualinga sabe é que o ataque reuniu as mulheres amazônicas que se tinham juntado em 2013. Eles se reuniram na mesma cafeteria em El Puyo onde sempre se encontravam, que pertence à família de outra ativista perseguida pelos governos e as empresas petrolíferas, Margoth Escobar. Eles disseram que não iriam intimidá-las. “Eles não nos conhecem. Eles não me conhecem”, diz Gualinga. Algumas semanas depois, ela recebeu o prêmio Broto de Ativismo Ambiental no Festival Internacional de Cinema Ambiental das Ilhas Canárias, que em edições anteriores reconheceu o trabalho de outras ativistas como Berta Cáceres, Ikal Angelei e Ruth Buendía.
Naquela manhã de fevereiro de 2019, El Puyo, como há meio século, vive e morre no paradoxo do petróleo, a grande vitória pírrica do progresso do Equador, que alcançou o absurdo de exibir seu primeiro barril de petróleo bruto em um desfile militar, como se fosse o herói nacional. Patricia Gualinga fala com a mesma voz doce e severa com que falou aos trabalhadores da companhia de petróleo, a ministros e às cortes internacionais, e diz, como se revelasse um segredo: “Quando o maior perigo, eu sou o mais lúcida”.